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    sábado, junho 24, 2006


    (Psicoterapia breve sem escola)


    Flávio Gikovate


    1. Introdução e apresentação dos objetivos
    Minha avaliação, ao fazer um retrospecto do que aconteceu com a psicologia e, em particular, com a psicanálise, ao longo do século XX, é de que as três primeiras décadas podem ser consideradas como a dos “anos dourados”. Os extraordinários avanços representados pela psicanálise jamais deveriam ser subestimados mesmo por aqueles que, como eu, sempre tiveram muitas dúvidas acerca do rigor e veracidade de suas conclusões. Às contribuições geniais de Freud se agregaram várias outras de seus “discípulos” mais dotados e que talvez por isso mesmo se tornaram dissidentes – a cega obediência dificilmente pode conviver com um espírito criativo e inovador. Jung, Adler, Ferenczi, Rank estão entre os muitos que participaram dessa época invejável, quando se trocavam experiências e os dogmas ainda não existiam, quando se estava na “oposição” e não no “governo” e todos, a maioria ainda jovem, foram amigos e analistas uns dos outros.
    Ao mesmo tempo, na Rússia e não na Áustria e arredores, estudos de fisiologia animal conduzidos por Pavlov introduziam interessantíssimos elementos ao processo de aprendizado, os chamados reflexos condicionados. Tais reflexos, uma vez estabelecidos, eram difíceis de serem desfeitos e, na prática, atuavam como os reflexos incondicionados, aqueles com os quais nascemos e que nos protegem contra animais perigosos, escuro, ruídos fortes, entre outros. As reações neurofisiológicas relacionadas com a luta e a fuga e que são a essência dos processos orgânicos relacionados com o stress também foram estabelecidos por volta dessa época.
    A partir dos anos 1930 a psicanálise passou a ter crescente credibilidade e as sociedades psicanalíticas se estenderam para quase todas as partes do mundo. O assim chamado “movimento psicanalítico” foi, cada vez mais, sendo conduzido por discípulos e não por Freud pessoalmente. As formas de treinamento de novos profissionais e as técnicas de trabalho foram sendo padronizadas de forma cada vez mais consistente, especialmente depois da morte do fundador (1939) e especialmente na Inglaterra, para onde migrou o centro de poder do “movimento”. Surgiram, de modo mais evidente, as disputas pelo poder. Todos queriam suceder o mestre, inclusive sua filha Ana e Melanie Klein. Não há interesse em descrever detalhes assim “humanos” observados entre aqueles que se propunham a ser criaturas mais equilibradas e bem “analisadas”.
    Não é o caso aqui de aprofundar a descrição do que acontece quando uma doutrina se transforma em uma instituição e o que isso possa significar para o avanço ou retrocesso de uma ciência. De forma genérica, penso que o processo passa a ser governado pelas regras usuais nas instituições, qualquer que seja a doutrina envolvida. O fato é que foi dessa forma que a psicanálise se estabeleceu e se disseminou, gerando núcleos autoritários em todos os continentes. Encontrou grande oposição na França, talvez em virtude das históricas rivalidades européias. Como costuma acontecer em outros setores da atividade humana, é claro que grupos críticos também se constituíram em toda a parte, defendendo pontos de vista antagônicos ao da psicanálise, ou seja, de que o essencial para o entendimento da nossa condição tem que ser procurado nos meandros do nosso cérebro, na química e nos mecanismos recém descobertos relacionados aos reflexos condicionados. Entre esses opositores, o mais radical e vibrante talvez tenha sido Eisenck, professor na Universidade de Londres, e que fazia guerra aberta à “sede central” da psicanálise, localizada há poucos quarteirões de distância de sua sala.
    Outros autores atuavam no desenvolvimento de processos relativos aos mecanismos reflexos, de modo que começaram a pipocar trabalhos mostrando a utilidade de propostas terapêuticas derivadas dessa matriz. Surgiram, nos USA, os textos de Skinner propondo técnicas específicas para o tratamento de crianças deficientes e também para outras condições. Autores de formação médica, especialmente Wolpe e Lazarus, desenvolveram os primeiros tipos de terapias comportamentais para aplicação em casos de fobias. Outros autores também se dedicaram a essa tarefa, especialmente em Londres a partir dos anos 1960.
    A França só passou a se interessar pela psicanálise quando ficaram conhecidos os trabalhos de Lacan, uma espécie de reescritura dos textos originais de Freud em uma visão talvez ao mesmo tempo revolucionária e adaptada ao modo de pensar dos franceses. De todo o modo, para a psicanálise de linhagem inglesa, que vinha vivenciando ao mesmo tempo grande reconhecimento internacional e severo processo de cristalização – entendido como empobrecimento de suas possibilidades de renovação e perda total de criatividade –, a entrada em cena de Lacan e das sociedades que se constituíram em seu nome significou em grave cisão interna e polarização de posições no seio do “movimento”. Além de uma vertente “Junguiana”, sempre presente, mas pouco influente, havia agora os “Lacanianos” que se opunham aos tradicionais psicanalistas da escola freudiana inglesa.
    Entre os comportamentalistas também havia divisões: os discípulos de Skinner eram os mais radicais e negavam qualquer utilidade a algo que não fossem os trabalhos de condicionamento operante. Os de mente um pouco mais aberta aceitavam os empenhos de tratar pessoas por meio de processos de dessensibilização sistemática e até mesmo técnicas mais radicais tipo “implosion” – exposição de um fóbico, por exemplo, à mais adversa condição para buscar um resultado mais rápido – e que foram usadas com algum sucesso pelo grupo do Maudsley Hospital de Londres chefiado por I.M.Marks. Surgiu, também nos USA, o termo “terapia cognitiva”, cunhado por A. Beck e também desenvolvido por A. Ellis, e que implicava em tratamentos envolvendo contatos verbais de caráter não dinâmico, ou seja, conversas que pretendiam entender os equívocos cometidos durante o processo de compreensão de uma dada situação geradora de sintomas e buscar fórmulas terapêuticas, muitas vezes semelhantes às desenvolvidas pelos comportamentalistas. Da reunião delas surgiram as terapias cognitivo-comportamentais, hoje tão bem aceitas.
    Dentre os psicanalistas que, antes da segunda guerra mundial, migraram para os USA, cabe o registro especial para Franz Alexander. Trabalhando em casos de medicina psicossomática, tratou de tentar adequar os conhecimentos psicodinâmicos estabelecidos pela psicanálise a formas de tratamento mais adequadas à cultura norte americana. O senso prático, as questões até mesmo de caráter material próprios desse povo para quem os resultados contam mais do que as doutrinas – até porque não costumavam ser grandes produtores de teorias – criaram as condições ótimas para o surgimento das primeiras reflexões efetivas acerca da necessidade de revisão da técnica psicanalítica no sentido de torná-la mais adequada à prática médica. Surgiram, ao longo dos anos 1950, os trabalhos iniciais de psicoterapia analítica breve sistematizados no livro, escrito por Alexander junto com T. French, chamado Terapêutica Psicanalítica, marco básico para o surgimento das técnicas psicoterapeuticas hoje mais usadas em todo o mundo. Otto Rank, que também havia emigrado e se preparava para viver uma nova etapa, talvez a mais produtiva de sua vida, inclusive com interferência nas questões técnicas, morreu prematuramente logo após a guerra.
    Não se pode deixar de registrar que na Inglaterra do pós-guerra também aconteceram importantes contribuições e que influenciaram a maneira de pensar de muitos psicoterapeutas em todo o mundo. Talvez o mais influente, junto com Winnicott, tenha sido Bowby, que tratou particularmente dos vínculos, dos elos que unem crianças às suas mães e de como eles podem influir no modo de vivenciar relacionamentos em fases posteriores da vida.
    O trágico é que os profissionais mais ortodoxos e radicais defensores de cada uma dessas doutrinas têm tanta certeza de que estão de posse da verdade absoluta que nem sequer se dão ao trabalho de ler o que pensam seus colegas pertencentes a outros grupos. Aliás, a simples existência de tais grupos já é dramática, pois não é assim que se faz ciência. Ciência depende da observação de fatos, de resultados. Ciência depende de debates, de confronto entre pontos de vista e resultados, e não da formação de “escolas” que se isolam e não querem contato com oponentes. Não existe teoria física que se sustente se os fatos não a comprovarem. Em psicologia isso existe!
    Ainda hoje existem, e são maioria, os defensores desse ou daquele grupo teórico. Na prática, porém, todos tem tido a necessidade de trabalhar de forma mais homogênea. Hoje vivemos divergências teóricas enormes e práticas terapêuticas mais afinadas. A grande maioria dos terapeutas não tem tido resultados brilhantes e a conseqüência disso tem sido o forte declínio da procura por psicoterapias e uma diminuição do respeito pelos profissionais que as praticam. Surgiram medicamentos novos, razoavelmente eficientes, e muitos são os que preferem se submeter a tratamentos farmacológicos ao invés de psicoterapias. Outros preferem relaxamentos, Yoga ou práticas de meditação. Outros ainda aderem a algum dos inúmeros tipos de charlatanice que sempre se renovam. Muitos preferem ler livros que parecem lhes dar a fórmula da salvação.
    Aqueles profissionais que trabalham com melhores resultados são os que têm uma visão mais global, mais ampla das questões humanas, além de se sentirem menos comprometidos com qualquer tipo específico de teoria psicológica ou técnica psicoterapêutica. É claro que todos temos nossas preferências, mas o que se segue, e que constitui a base do que hoje se chama de psicoterapia breve sem escola, tem por finalidade o bem estar do paciente. Trata-se de um trabalho personalizado, onde se busca essencialmente uma forma de encaminhar e, se possível, solucionar os dilemas e dramas de uma dada pessoa. Não se trata de defender essa ou aquela teoria ou técnica terapêutica. Trata-se de ajudar o indivíduo que nos procurou a sair do desconforto em que está mergulhado.


    2. Um referencial teórico, ainda que genérico

    Quando se fala em “psicoterapia breve sem escola” não se está pensando em ausência de qualquer tipo de fundamento teórico e sim numa visão eclética, onde todos os pontos de vista são levados em conta. O ideal seria que o terapeuta estivesse familiarizado com as diversas correntes que têm se digladiado, que evitasse o conflito e buscasse extrair o que de melhor elas têm para o tratamento de seus pacientes. Uma psicoterapia focada no paciente implica em domínio da prática sobre a teoria: o terapeuta observa a realidade com cautela e a maior objetividade possível e tenta encontrar o melhor caminho de ajudar seu paciente. Trata-se, comparando com a moda, de um trabalho de “alta costura” e não o “pret a porter”, uma técnica e um procedimento que terão que servir para todos. Cada caso é um caso.
    Acho que a expressão que pode definir um posicionamento teórico eclético e de utilidade operacional é a de que “o homem é um ser bio-psico-social”, o que ouço desde os tempos em que era estudante de medicina e que só muito recentemente entendi exatamente o que significa – ou acho que entendi! Que tenhamos nascido com uma máquina bastante interessante e potente, constituída de 100 bilhões de neurônios, é fato que não desperta mais nem espanto e nem dúvidas. Apesar de possuí-la, vivemos quase como os macacos superiores por cerca de 100 mil anos antes de termos podido iniciar a constituição de uma vida típica da nossa espécie. As eventuais conquistas, feitas por pequenos grupos de humanos, não se perpetuavam, não passavam de uma geração à outra. Não havia forma de registrar tais aquisições, de modo que cada novo grupo humano tinha que iniciar tudo do zero.
    Nosso cérebro só começou a ser usado de modo mais efetivo quando fomos capazes de construir nossa principal e mais fascinante conquista: a linguagem. Ao associarmos símbolos aos objetos, situações e ações, ao usarmos fonemas para descrever tais símbolos, fomos capazes de construir seqüências deles – e seus sons – que descreviam acontecimentos e também indicavam o que se passava na mente da pessoa que falava e que agora passava a ser inteligível aos outros membros daquele grupo, uma vez que todos aceitavam os mesmos símbolos como indicativos das mesmas coisas. Desta forma, tornou-se possível a transmissão de informações também de uma geração à outra, iniciando um processo de acumulação de conhecimento que desembocou nos avanços que temos acompanhado ao longo dos últimos séculos e, principalmente, das últimas décadas.
    A construção da linguagem criou condições para que as correlações entre os símbolos (agora chamadas de palavras) pudessem se dar das formas as mais variadas e mesmo sem conexão direta com o mundo material. Surgem hipóteses, idéias a respeito de condições que não existem, surge a capacidade de julgar, de avaliar a conduta dos semelhantes, surgem as possibilidades de constituição de grupos cada vez maiores através da constituição de uma certa ordenação e também da racionalização do trabalho; e assim por diante. Surge também a mentira! Ou seja, a capacidade de uma pessoa falar que sente o que não sente, que assistiu o que não ocorreu, que fez o que não fez. A memória passa a ser usada de forma mais eficaz, uma vez que armazena mais e com mais facilidade graças ao uso das palavras. Surgem também os lapsos de memória.
    Mesmo que compreendamos que o nosso sistema de pensamento deriva da atividade cerebral, a verdade é que não temos a menor idéia de como aquelas células são capazes de produzir pensamentos. E muito menos como estes pensamentos se correlacionam entre si, como se comunicam e interagem com outros humanos, como eles geram novos pensamentos que poderão se transformar em novos fatos que irão, através da ciência e seus avanços, gerar um habitat cada vez mais modificado em relação àquele que o homem primitivo encontrou. Assim, o pensamento é parte de um fenômeno que percebemos como autônomo, independente da função cerebral. Vivemos nossa subjetividade como constituída por algo imaterial, um universo de idéias, emoções e correlações que não tem mais nada a ver com a atividade cerebral e que só irá depender dela nos casos em que ali vierem a existir problemas ou danos físicos efetivos. O fato é que vivenciamos nossa subjetividade como desvinculada do cérebro. Talvez daí se tenha extraído a idéia tradicional de que ao nosso corpo se incorporava uma Alma – termo com o qual simpatizo muito e que proponho seja reintroduzido em substitição a Mente, que tem uma conotação um tanto material e científica que nos induziria a pensar que temos mais conhecimento sobre o assunto do que efetivamente temos. Alma implica em algo quase mágico, capaz de produzir a música, as obras de arte, os poemas, e tantas outras coisas boas e más.
    Ao usar o termo “alma” estou pensando que ela é uma parte imaterial que se formou a partir da atividade cerebral, mas que ganhou vida própria, na qual os pensamentos se inter-relacionam de uma forma livre, aleatória e independente do corpo – do qual só volta a depender, insisto, em casos de danos na parte física que a sustenta. Assim, existem os problemas derivados de danos na atividade cerebral. Existem também problemas e sofrimentos derivados de equívocos que surgem no seio das atividades próprias da alma. Correspondem a dois domínios independentes, mas que interagem permanentemente. Na metáfora de informática, útil já que este setor da atividade sempre tenta imitar o que acontece conosco, o cérebro é o hardware enquanto que a alma corresponde ao software.
    A complexidade própria da nossa condição não para por aí. Por força de vários elementos, alguns de natureza instintiva e outros ligados ao estilo de vida que fomos construindo, vivemos em grupos cada vez maiores, definidos por interesses territoriais, divisão do trabalho e dos seus frutos, língua única e estilos de vida definidos que se constituíram ao longo da vida das gerações que nos antecederam. Elas construíram também um conjunto de normas de valor e de pontos de vista com os quais nos familiarizamos desde pequenos e que constituem nossas crenças. Assim, o homem, em virtude de suas características biológicas e principalmente do modo como funciona sua alma, se constitui e se organiza em grupos sociais peculiares.
    Nascemos com o cérebro praticamente formado. A alma inexiste, e terá que ser moldada a cada geração – ontogênese. Isso acontece de modo mais fácil do que no início da nossa história como espécie – filogênese – justamente porque o grupo onde hoje nascemos já estava composto e acumulou informações práticas e crenças. Cada nova criatura abastece, ao menos inicialmente, sua alma incorporando os usos e costumes do seu grupo, de modo a melhor fazer parte dele. Nossa constituição sofre, pois, brutal influência do grupo onde crescemos e das crenças que o regem. Cada geração fará avanços justamente ao colocar em dúvida as crenças adquiridas sem reflexão e propondo novos conceitos práticos ou de estilo de vida. Assim, nossa alma irá primeiro se constituir a partir das normas do grupo social em que nascemos e depois irá ser o fator de modificação dessas mesmas normas. Nunca será demais ressaltar a importância das primeiras e fundamentais relações afetivas entre cada bebê e seus pais, especialmente sua mãe, na formação de cada novo adulto, uma vez que elas exercem papel essencial na maneira como as normas e crenças da cultura são transferidas em cada contexto familiar específico.
    Mesmo não sendo o caso aqui de discutir em profundidade como se constituem nossas sociedades e as regras práticas que as regem, fica claro o quanto somos os criadores delas e como somos influenciados por elas. Aliás, tudo o que se passa conosco como espécie é assim: o cérebro “produz” a alma que ganha vida própria e pode mesmo influir sobre o corpo. O homem, agora possuidor de alma, se constitui em sociedade e depois ela irá influir sobre as almas que as constituíram e sobre as gerações que vierem. Ou seja, o corpo gera a alma e essa a sociedade. A sociedade influencia sobre a alma e o corpo, enquanto que a alma influencia o corpo e a sociedade, sendo verdade que nada disso existiria sem a atividade cerebral.
    Fica muito difícil, pois, pensarmos em nós como possuidores de uma “natureza humana” fixa, algo similar ao que acontece com os outros animais, inclusive com os mamíferos superiores com os quais muitos autores insistem, equivocadamente a meu ver, em nos comparar. Costumamos chamar de nossa natureza aquilo que nossos antepassados formaram como hábitos, ou seja, a mistura de algumas propriedades biológicas com um conjunto de crenças. Porém, tais crenças – e mesmo o que é biológico – constituem apenas uma das possibilidades, uma das quase infinitas possibilidades. Nossa “natureza” se modifica em cada época, pois temos que nos adaptar àquilo que nós mesmos criamos em termos de meio externo, estrutura social e até mesmo convicções intelectuais. Somos seres incrivelmente mutáveis, de modo que me soa um tanto simplista afirmações, por exemplo, de neurobiologistas influenciados pelas teorias darwinianas de que estamos apenas a serviço da perpetuação da espécie. Prefiro o ponto de vista de Ortega y Gasset, de que o homem não tem natureza; o homem, segundo ele, tem história!
    Este caráter “plástico” que nos caracteriza explica inclusive certas variações que se passam no domínio da psicopatologia. Minha geração viu desaparecer as manifestações de histeria de conversão, aqueles quadros que correspondiam às primeiras pacientes de Freud. Ainda vi muitos casos de paralisia e cegueira histérica nos meus tempos de médico residente, isso nos anos de 1966-7. Todos sabemos que a freqüência de homossexualidade cresce e decresce conforme as normas de cada época e sociedade. Hoje assistimos uma epidemia de casos de bulimia e anorexia, fenômenos que eu desconhecia há 30 anos atrás. E assim por diante. É sempre bom estar atento a mudanças tanto no plano dos distúrbios psíquicos como mesmo das doenças físicas. No meu caso, tive o desprazer de acompanhar alguns dos primeiros casos de AIDS que surgiram no Brasil, trazidos por homossexuais viajantes e que freqüentavam boates e bares em Nova York e Paris. A perplexidade era enorme, pois ainda não se tinha idéia do que estava acontecendo. Isso se deu por volta de 1980, ou seja, há menos de 25 anos.
    De uma forma bem geral e apenas com finalidade operacional tentarei relatar quais as principais peculiaridades de cada um destes três segmentos que nos constituem no que diz respeito aos distúrbios psíquicos que nos interessa tratar por meio das técnicas breves de psicoterapia. Elas serão apenas mencionadas aqui e algumas delas serão melhor explicadas ao descrever alguns casos típicos de propostas terapêuticas, o que farei adiante. No que diz respeito ao cérebro, dependemos dele basicamente nas seguintes condições:
    a) Quando se estabelecem reflexos condicionados envolvendo principalmente situações de medo ou ansiedade. Tais reflexos são fáceis de serem estabelecidos e por vezes difíceis de serem desfeitos. São mecanismos importantes nas fobias de todo o tipo, em distúrbios obsessivos e participam da constituição de vários outros distúrbios.
    b) Quando existem experiências traumáticas graves se constitui uma síndrome cada vez mais bem conhecida que se chama Síndrome do Stress Pós Traumático.
    c) Quando surgem quadros depressivos relacionados com alterações de concentração de Serotonina nas sinapses cerebrais.
    d) Nos casos de dependência química de drogas psicoativas, onde parece haver a interferência de outras aminas cerebrais, especialmente a dopamina.

    Quando pensamos naqueles distúrbios que dependem essencialmente da alma, de falhas derivadas do processo de pensar, sentir e avaliar situações e pessoas, podemos enumerar principalmente as seguintes:
    a) Erros de avaliação de si mesmo, comprometendo a auto-estima. Isso em diversas fases da vida, dependendo de peculiaridades físicas, forma como somos tratados por pais e irmãos, de resultados que obtemos em tarefas a que nos propomos.
    b) O quanto fomos capazes de superar os obstáculos que fazem parte de nossa história de vida, de modo a termos ou não completado nosso amadurecimento emocional e também a plena evolução moral.
    c) Os dramas e dilemas que derivam do fato de que temos muitas escolhas fundamentais a fazer ao longo da vida: escolha de parceiros sentimentais, escolhas profissionais e também de estilo de vida.
    d) As angústias que podem derivar das grandes questões de nossa existência e que a alma pode detectar: o sentido da vida, o medo da morte, possíveis condições posteriores ao fim dessa vida etc.

    Por fim, e apenas esboçando questões extremamente complexas, dependemos do modo como as normas de uma dada sociedade influem sobre nós, propondo valores consistentes ou não, exigindo desempenhos possíveis ou não. Vejamos alguns exemplos capazes de desestabilizar nossa subjetividade:
    a) Nos desequilibramos quando a moda nos propõe padrões estéticos que não fazem parte de nossa biologia e não são fáceis de serem atingidos por nós, como é o caso de um peso ideal muito baixo. Isso implica em aumento grande dos casos de bulimia e anorexia, além de enorme número de pessoas que passam a depender de substâncias químicas anorexígenas, sem falar da epidemia de cirurgias estéticas de resultados duvidosos.
    b) As pressões de desempenho sexual só têm crescido. Sempre foram grandes sobre os homens, o que é importante fator nos distúrbios sexuais masculinos. Têm se tornado muito grandes também sobre as mulheres, levando muitas delas a problemas e a fingir orgasmos que inexistem.
    c) Temos sofrido pressões enormes no sentido da socialização, especialmente os jovens, em especial no trato com o sexo oposto, o que gera timidez. Os meninos sofrem pressões enormes no sentido de estarem de acordo com os padrões agressivos tidos como típicos da virilidade; quando não conseguem, ficam predispostos ao desenvolvimento homossexual. As meninas sofrem pressões estéticas e de sucesso com o sexo oposto o que também gera condições facilitadoras da homossexualidade feminina.
    d) Posturas rejeitadoras da sociedade sobre determinados grupos minoritários gerando frustração, humilhação, ressentimentos e reações emocionais indevidas. São vítimas negros, índios, minorias étnicas em geral, divorciados ou solteiros em determinadas sociedades, homossexuais etc.
    e) Pressões no sentido de padronização da vida afetiva, das pessoas todas se casarem e com parceiros complementares. Preconceitos contra aqueles que decidem viver sozinhos, ou, mesmo casados, que não querem ter filhos. Pressões para o casamento precoce podem determinar erros na escolha de parceiros, gerando dilemas emocionais de monta em momentos futuros.
    É claro que esses poucos exemplos não cobrem toda a gama de questões relativas aos dilemas da vida emocional e dos distúrbios psíquicos. Fazem parte, porém, dos principais ingredientes com os quais temos que lidar na prática clínica quotidiana, pois dizem respeito à grande maioria dos nossos pacientes, especialmente aqueles que podem ser tratados pelas técnicas breves de psicoterapia.
    3. Propriedades de um “bom psicoterapeuta”

    Nas revistas de psiquiatria surgem periodicamente estudos completos (meta-análises) de revisão de eficácia dos diversos tipos de psicoterapia. Os resultados são, quase sempre, similares – hoje com certa vantagem para as técnicas cognitivo-comportamentais especialmente nos casos específicos onde o medo ou a ansiedade está em jogo. Além de resultados bastante semelhantes, lembro-me de um estudo que li há cerca de 30 anos (cuja referência me escapa) que mostrava que ao invés de seguidores de uma das diversas técnicas os terapeutas podiam ser classificados em “bons” e “maus”. E mais, que os bons terapeutas trabalhavam, na prática, de modo muito similar independentemente da corrente teórica à qual se filiavam. Ou seja, na realidade, eram terapeutas ecléticos, que atuavam de acordo com procedimentos que transbordavam os limites das doutrinas nas quais haviam sido formados.
    Fiquei profundamente impressionado por esse estudo, que era norte-americano, onde a prática parecia ser mais importante que a teoria. Talvez seja pretensão, mas o que gostaria de descrever aqui são as propriedades que considero fundamentais para aqueles que quiserem ser parte do grupo dos bons terapeutas. E a primeira deriva do que já foi escrito: que a vontade de ajudar o paciente, de entender o que se passa com ele seja maior do que o desejo de encaixá-lo dentro das normas de qualquer teoria.
    Esse desejo de entender e de verdadeiramente se entender com o outro é o elemento essencial daquilo que se chama de empatia. Não se trata de processo fácil e não é, para a maioria de nós, um fenômeno espontâneo. Trata-se inicialmente de compreendermos a dificuldade que existe na comunicação entre os humanos, mesmo entre aqueles que falam a mesma língua e cresceram numa mesma cultura. Cada “software” é único, já que a partir dos 2-3 anos de idade cada um começa a correlacionar as informações que recolheu por meio das palavras, sendo que esse processo se torna cada vez mais complexo e ímpar, pois o modo como se arranjam os pensamentos não é igual nem mesmo nos gêmeos univitelinos – cujas diferenças, tanto em temperamento quanto em relação a condutas patológicas, têm sido registradas com frequência crescente nas publicações técnicas. Assim, cada um de nós é uma espécie de ilha isolada e a consciência desse caráter único nos dá a idéia de como é difícil tentarmos penetrar na alma do outro. Cada um de nós, por sermos únicos, estamos condenados, no essencial, a uma “radical solidão” (Ortega y Gasset).
    A consciência dessa dificuldade na comunicação entre nós e nossos pacientes não deve estar a serviço de desanimarmos. Deve nos alertar para o fato de que empatia não implica em nos colocarmos no lugar do outro levando nossa alma para o corpo dele. Temos que tentar entender como funciona a alma do outro. Temos, como “hackers”, que entrar no “software” do paciente para entender como ele opera para melhor detectar deficiências e falhas no sistema dele. Depois temos que “sair de dentro dele” e, de fora, tratar de contar a ele o que é que vimos enquanto estivemos “nele”. A verdadeira empatia se baseia na aceitação das diferenças e na tentativa de superação das dificuldades de entendimento entre diferentes.
    O que acontece quando conseguimos êxito nesse tipo de procedimento é que o paciente se sente aconchegado, entendido. Se sente menos sozinho! Já estamos diante de uma relação especial que, bem usada, poderá ter grande eficácia terapêutica. Aliás, esse mesmo trabalho cuja referência perdi falava muito da importância dos “fatores inespecíficos” na eficácia das psicoterapias. Os fatores específicos seriam aqueles derivados da teoria e técnica particular que porventura esteja sendo praticada. Os fatores inespecíficos dependem mais que tudo da postura empática do terapeuta e de outras peculiaridades próprias de sua personalidade. Tudo leva a crer que os fatores inespecíficos estão longe de serem irrelevantes quando se trata de avaliar resultados. Assim, além de se familiarizar com uma determinada teoria psicológica – que idealmente deverá ser eclética e aberta a todo o tipo de inovações – e de conhecer procedimentos psicoterapeuticos específicos, o bom terapeuta tem que se preocupar consigo mesmo, com sua evolução como pessoa, com o seu papel, com o que ele vai representar para seus pacientes.
    Em verdade estou me referindo a duas questões diferentes: a do chamado “efeito placebo” e a das propriedades psicológicas do bom terapeuta. Algumas breves palavras a respeito do efeito placebo são indispensáveis, uma vez que a atitude positiva do paciente diante da eficácia de qualquer tipo de medicação, fármaco ou qualquer outro tipo de tratamento, parece aumentar muito a eficácia do dado tratamento. Lembro-me, há 30 anos atrás, de um cardiologista querido – falecido precocemente – que veio me contar, impressionado, como o propanolol parecia muito mais eficaz quando ministrado por ele do que por seus colegas que não eram tão entusiastas em relação ao terapêutico dos chamados beta bloqueadores que estavam nascendo por aqueles anos. Era como se fossem dois remédios diferentes, dizia ele: o que ele administrava parecia de melhor qualidade do que o de seus colegas!
    Os estudos a respeito de hipnóticos exigem, mais que tudo, controles sofisticados com drogas neutras – os placebos – uma vez que um terço dos pacientes adormecem com pílulas de talco enquanto que o melhor dos hipnóticos adormece dois terços dos insones. Há tendências nos USA de iniciar todo o tipo de tratamento farmacológico para insônia com placebo, uma vez que se resolveria uma boa parte dos casos sem necessidade de medicação eficaz. Ora, se isso é válido para a medicina em geral, que dizer de sua eficácia nos tratamentos essencialmente psicológicos? É possível que todos os tipos de terapias alternativas, sem base teórica alguma, tenham sua eficácia apenas fundada no otimismo e nas belas palavras proferidas por quem ministra tal tipo de “tratamento”. É provável também que o efeito placebo não tenha eficácia no longo prazo e jamais deveria ser visto como procedimento terapêutico por si. Porém, serve muito bem para o início de um relacionamento psicológico, para que se estabeleça um bom clima, um clima de confiança e otimismo que, sem dúvida alguma, aumenta muito as chances de se chegar a um bom resultado, especialmente quando a esse efeito se associa um procedimento terapêutico efetivo e eficaz.
    O preparo intelectual e emocional do psicoterapeuta me parece cada vez mais fundamental. Não que eu seja favorável a procedimentos obrigatórios como o da “análise didática” imposta pelas sociedades de psicanálise; mas a realidade é que um bom terapeuta é portador de determinadas propriedades que deveriam ser a meta daqueles que se dedicam a esse ofício. Acho complicado um indivíduo muito pouco consciente de suas peculiaridades emocionais ser um bom terapeuta. Acho improvável que um drogado seja bom terapeuta, assim como um obsessivo-compulsivo ou um portador de distúrbios da personalidade e precária formação moral. A confiança que um paciente tem que desenvolver em relação ao terapeuta para se sentir à vontade e confidenciar emoções e vivências desagradáveis não são compatíveis com tais características. O bom terapeuta tem que ser pessoa sincera; e espontânea. Tem que se comportar como é. Ou seja, não existe um tipo de terapeuta, um modo de ser terapeuta. O bom terapeuta é aquele que é ele mesmo!
    Acontece que para uma pessoa poder ser ela mesma tem que estar razoavelmente bem em sua própria pele. Isso não se consegue por decreto. Depende do indivíduo estar em conformidade com seus próprios valores. Ou seja, o terapeuta com boa auto-estima tem que ter, antes de tudo, um conjunto de valores aos quais se refere. Depois, tem que agir e viver em concordância com esses mesmos valores. Creio que esses são os ingredientes fundamentais do que se pode chamar de maturidade emocional e moral, condição indispensável para que o terapeuta não se perca em nenhuma das situações complexas e, por vezes, constrangedoras que envolvem o trato com pessoas nem sempre tão bem consigo mesmas e muito menos em paz com seus companheiros, inclusive com quem está tentando ajudá-lo.
    O processo da empatia e eventuais outros mecanismos psíquicos que chamamos de intuitivos deverão, ao menos idealmente, se transformar em fórmulas racionais na alma do terapeuta. Isso para que ele esteja em ótimas condições de dar o melhor encaminhamento a cada situação. Não se trata de possuir fórmulas prontas. Tudo tem que ser resolvido ali e agora também pelo terapeuta. É preciso ousadia. É preciso que não se tenha medo de errar. É claro que ninguém procura o erro e nem se alegra com ele. Acontece que muitas vezes o erro é muito eficiente para o processo terapêutico: falo algo ao meu paciente que o deixa inquieto e insatisfeito – se falei aquilo é porque achei que estava ajudando e dando o encaminhamento adequado à situação; na consulta seguinte ele volta dizendo que não passou bem e começa de novo a relatar a situação que deu origem à minha má interpretação. Na própria forma de recontar sua história o paciente irá me dar a indicação de onde errei, de modo que poderei retomar uma rota adequada e produtiva, o que será imediatamente reconhecida por ele como tal, já que provocará sensação de alívio e bem estar. O paciente não se incomoda com nosso erro a menos que queiramos defendê-lo até à morte, tratando sua discordância como “resistência”, o que, na maioria das vezes, é absurdo e óbvia manifestação de prepotência do profissional.
    O bom terapeuta é pessoa serena, amadurecida emocional e moralmente, o que significa na prática que tolera bem frustrações e dores, que tem controle sobre suas emoções, especialmente as de natureza agressiva, que é capaz de ousar, errar, reconhecer o erro e aprender com ele, que tem princípios éticos e vive de acordo com eles. Sendo assim, passará a sensação de ser pessoa confiável, elemento indispensável para o bom andamento de uma relação assim íntima e complexa como é a relação terapêutica. Todo aquele que pretenda se aprimorar como psicoterapeuta terá que ter como meta seu próprio desenvolvimento emocional. Costumo dizer que eu sou o meu cliente favorito!
    Sempre é bom lembrar que um bom terapeuta é pessoa séria e estudiosa, preocupado em expandir sua formação intelectual, sua base teórica. Terá que ser portador de um cérebro “poroso”, o que significa uma capacidade permanente de reciclagem de estar sempre disposto a mudar de idéia se novos fatos – ou mesmo novas idéias – parecerem interessantes e eficientes. Não deve ser um mestre e sim um aprendiz. Deve colocar-se diante de cada paciente como se pudesse esquecer tudo o que sabe de psicologia e estivesse ali para aprender. É o oposto do que fazem quase todos, ou seja, tratar de rapidamente enquadrar o paciente em um dos seus rótulos e compartimentos. O bom terapeuta é bom ouvinte e está permanentemente aprendendo com todos aqueles com quem conversa. Essa é a razão pela qual a profissão pode ser fascinante por longo prazo. Muitas vezes me perguntaram como é que eu agüento trabalhar tantas horas e por tantos anos. Não estaria eu enjoado de ouvir sempre as mesmas histórias? Claro que não, porque minha postura é a da permanente renovação. Não estou atrás do que aquela dada história tem em comum com tantas outras que já ouvi. Estou atrás do que ela tem de original, de própria, de única. E sempre é possível encontrar algo de novo e fascinante mesmo no mais comum dos relatos.


    4. Psicoterapia breve: as primeiras consultas

    A primeira consulta em nossa especialidade é a mais importante de todas. Inicialmente temos que nos fazer conhecer sem que isso implique em qualquer procedimento exibicionista. Temos que ser como somos e ver como aquele dado paciente reage ao nosso jeito. É claro que quando somos pessoas sinceras e razoáveis acontecerão mais simpatias do que antipatias. Ainda assim, poderão ocorrer desacertos, o que provavelmente irá se manifestar em seguida, uma vez que o paciente não retornará. Temos que nos fazer confiáveis, dignos das confidências que ouviremos. Isso, como disse, se faz automaticamente. Se faz facilmente confiável quem é, de fato, confiável!
    Ouvir uma história de forma tranqüila, sem deixar de se emocionar, mas ao mesmo tempo sem se surpreender demais é uma arte. A impessoalidade do terapeuta não é minha postura e nisso estou de pleno acordo com a psiquiatra norte-americana J. Halpern que escreveu um interessante livro sobre empatia. É preciso ter domínio sobre as próprias emoções, pois se emocionar implica em viver a história que se está ouvindo, exatamente como nos acontece quando vamos ao cinema. Porém, é preciso vez por outra sair da situação de empatia para um momento racional de reflexão e ponderação, comunicada ou não para o paciente conforme consideremos necessário e oportuno. Jamais devemos agir de modo a fazer julgamento de valores. O bom terapeuta não é um juiz, apesar de ter seus valores. Tem que respeitar o modo de ser do paciente.
    É preciso cuidado para não fazer observações precipitadas, ainda que muito apropriadas, agudas e corretas. Muitos pacientes eu perdi por ter sido “eficiente” demais na primeira entrevista, falando coisas que os surpreenderam a tal ponto que jamais voltaram. Quando revejo, com calma, esses meus procedimentos, eles estiveram a serviço da minha vaidade, de querer mostrar como eu era competente e rápido. Rápido demais para o gosto de determinados clientes. Rápido e ineficiente, já que o paciente foi embora. É preciso serenidade e paciência para falar as coisas de forma adequada e na hora oportuna. É evidente que não existe a menor possibilidade de jamais errarmos. Só não erra quem não faz. Aliás, os críticos da empatia como processo através do qual o terapeuta se envolve e se emociona dizem que tal procedimento aumenta o número de erros devidos a um eventual envolvimento excessivo do profissional. Talvez seja verdade. Porém, penso que erra mais aquele que, acovardado, prefere o distanciamento que impede o pleno contato com a alma do paciente.
    De todo o modo, a primeira consulta serve para o mútuo conhecimento e também para que se construa um projeto de trabalho. Para o melhor andamento desse encontro fundamental o interessante seria podermos dispor de um tempo variável e não fixado em 45-50 minutos. O ideal é que a primeira consulta termine depois que se tenha construído o plano de tratamento. Se isso não for possível, o faremos no próximo encontro que, de fato, será a continuação do primeiro. O projeto deverá ser construído em comum acordo. Quando se pensa em psicoterapia breve pensamos em algo como 25-30 consultas, em geral semanais. Ou seja, algo como seis meses de tratamento. Um projeto definido de trabalho se torna indispensável, uma vez que a tendência de um trabalho amplo e aberto como um leque é de durar por muito mais tempo.
    O terapeuta coloca os aspectos que lhe pareceram mais relevantes do que foi conversado e propõe que se siga um determinado caminho. Deverá ouvir o que o paciente tem a dizer, se ele considera adequadas as observações que ouviu, se acha mesmo que a problemática levantada pelo terapeuta é a que mais o incomoda. É preciso sempre estar disponível para ouvir o paciente de igual para igual e não da forma autoritária que costuma ser a postura de tantos maus terapeutas. Não se trata da imitação da relação pai-filho e sim de algo mais nivelado, onde a única diferença consiste no fato do terapeuta ter mais conhecimento e experiência para lidar com os temas em questão. O autoritarismo do terapeuta tem a ver com a arrogância intelectual que muitos têm por se acharem parte de um grupo de eleitos, os membros dessa ou daquela “seita”. Nada é mais deprimente do que presenciar a altivez de quem parece que não tem, não teve e jamais terá problemas semelhantes aos dos seus pacientes.
    Muitas são as vezes em que o relato do paciente mostra a existência de mais de um problema. Por exemplo, um homem pode ter uma disfunção sexual e também problemas no relacionamento amoroso com sua esposa. Pode ter a disfunção sexual, ser solteiro e ter problemas de ordem profissional, econômica, estar frustrado em outros aspectos da vida social etc. Pode ser tímido ou agressivo com as mulheres. E assim por diante. Se temos que escolher um tema para trabalhar, penso que o mais razoável é tratar da disfunção sexual, uma vez que é possível que muitos dos outros problemas tenham direta ou indireta relação com esse. E mais, que a solução desse problema venha acompanhada de progressos espontâneos em outras áreas. Assim, conversa-se claramente com o paciente sobre o fato de existir mais de uma dificuldade, de que se tem que fechar o leque e focar em um só aspecto como sendo o fundamental porque senão o tempo de duração da terapia poderá ser longo demais – e ainda por cima isso pode implicar em perda de eficiência e menor chance de atingimento de algum resultado em qualquer das áreas de conflito e mesmo em um trabalho de mais longo prazo.
    Nem sempre a resolução daquele problema específico implica no fim da terapia. Aliás, o termo terapia breve significa mais do que tudo a disposição prática de se buscar resultados. Não é obrigatório que termine com a resolução do problema principal que trouxe o paciente para o trabalho psicoterapeutico. Muitos ficam tão encantados com o procedimento terapêutico que se dispõem a práticas mais longas. Estaríamos diante de um falso dilema, qual seja o da análise terminável ou interminável. Penso que é dever do terapeuta avisar o paciente que os principais objetivos propostos no início foram atingidos e que, dali para adiante, se está passando da fase de trabalho que havia sido programada para outra mais genérica. Cabe ao paciente decidir se quer continuar a trocar vivências com seu terapeuta ou se prefere continuar sem esse tipo de troca. Cada caso é um caso e não cabe a nós decidir o destino da outra pessoa. Afinal de contas, somos meros consultores e não temos nenhum tipo de poder ou autoridade.
    Não quero me alongar aqui na descrição do processo de construção de projetos terapêuticos porque eles dependem de cada problema e também de cada tipo de paciente. Alguns são mais verbais e gostam de reflexões psicológicas e filosóficas amplas. Outros são mais diretos e práticos e querem ir atrás de resultados da forma mais objetiva. É importante respeitar o modo de ser do paciente e não impor a eles sempre o mesmo procedimento. Ao menos em parte, é preciso dançar conforme a música. Talvez alguns aspectos do que escrevi até aqui fiquem mais claros à medida que exemplifiquemos por meio de alguns casos clínicos ainda que genéricos. Isso significa que não irei falar desse ou daquele paciente em particular, mas de tipos genéricos construídos com base em minha experiência com milhares de pessoas.
    5. Exemplos de estratégias de tratamento


    a) problemas relacionados mais ao corpo


    Neste grupo de dificuldades as mais comuns são as fobias. Algumas são extremamente simples, como é o caso da fobia de baratas, presente em talvez 40% das mulheres e também em muitos homens. A barata, apesar de inofensiva, é capaz de provocar reações de pavor em várias dessas mulheres a ponto de subirem em móveis, saírem correndo de quartos de hotel etc. Provavelmente se estabelecem por imitação: meninas pequenas, dependentes de suas mães, assistem às manifestações de pavor delas diante das baratas e associam medo àquele animal que, diga-se de passagem, não é mesmo muito simpático. Os meninos assistem seus pais “salvando” as mães e, apesar da antipatia, aprendem que o animal não desperta medo igual nos homens.
    Fobias simples se estabelecem apenas por meio de reflexos condicionados. As tentativas psicanalíticas de interpretação sexual de situações desse tipo estão em total desuso até mesmo pelos psicanalistas. Foram objeto de ironias porque eram mesmo um tanto ridículas: associavam o medo de baratas a situações sexuais envolvendo a genitália feminina! A psicanálise não explica as fobias simples e não dispõe de meios para tratá-las. As únicas técnicas eficientes são as de natureza comportamental. Não há nada a entender em situações como fobias relacionadas com outros animais, aversão relacionada com situações nas quais se passou mal alguma vez no passado – restaurantes, locais públicos muito freqüentados, situações de trânsito caótico etc. Os tratamentos consistem em procedimentos de dessensibilização sistemática: sessões de relaxamento muscular profundo, acompanhadas depois de exposição em fantasia às situações fóbicas. Quando a pessoa é capaz de imaginar a situação fóbica com menos medo, passa-se para a prática, onde se usa processo de aproximação sucessiva e gradual ou a plena exposição brusca e mais radical. Tais tratamentos são desagradáveis e dependem da boa vontade dos pacientes, que só se dispõem a se tratar se tiverem suas vidas práticas muito prejudicadas.
    Outras fobias comuns são um tanto mais complexas, envolvem explicações além dos reflexos condicionados. São sempre difíceis de serem tratadas, uma vez que as pessoas preferem evitar as situações ao invés de se livrarem do medo. É o caso, por exemplo, do medo de altura: a pessoa teme se aproximar do beiral de um terraço alto porque tem a impressão de que algo dentro de si desejará se jogar; teme perder o controle sobre si mesma, de modo que este “algo” predomine e o indesejado venha a ocorrer. Não se trata de desejo de se matar e sim de medo de ter desejo de se jogar. Nunca tratei pessoas com fobia desse tipo, pois isso perturba pouco suas vidas práticas. As que se associam a espaços fechados e cuja saída pode ser difícil em caso de pane, como é o caso de pavor de andar em elevadores, envolvem um enorme medo de se encontrar em situações nas quais ela não poderá sair se for essa sua vontade. Tais medos implicam em experiências traumáticas prévias e o tratamento passa por técnicas comportamentais ou o uso de medicações anti-depressivas, que são tranqüilizantes do medo, associadas a sessões de terapia interpretativa nas quais se discute a dificuldade da pessoa de aceitar com docilidade condições nas quais somos impotentes.
    As agorafobias correspondem a medo de se locomover pelas ruas de uma cidade grande e eventualmente de freqüentar locais muito cheios, como campos de futebol ou um show de música pop. Quase sempre se estabeleceram em virtude do indivíduo ter passado mal em alguma situação na qual não pôde contar com socorro fácil. Ou então, passou algum constrangimento muito desagradável. Lembro-me de um rapaz que fazia roteiros em seus traslados de carro pela cidade tomando por base locais onde poderia ir a um banheiro; sua vivência traumática foi não ter sido capaz de se controlar e ter evacuado na roupa porque não teve acesso em tempo a um banheiro. Outros fazem roteiro dos hospitais porque tiveram algum mal estar que os traumatizou. Os tratamentos são do mesmo tipo que os descritos acima.
    Um exemplo de fobia mais complexa é o medo de voar. O pânico se estabelece ao longo da vida, não obrigatoriamente associado a alguma experiência traumática. Pode existir mesmo em pessoas que jamais entraram em um avião. Um certo medo existe em grande número de pessoas apesar dos dados indicarem que os riscos que corremos são iguais aos que vivenciamos quando estamos em terra. Talvez isso se deva ao fato de que o avião, ao levantar vôo, nos faz lembrar nossa condição de simples mortais, fato que nos passa desapercebido na maior parte do tempo que estamos em terra vivendo e nos atendo aos problemas do cotidiano. O mais comum é que surja justamente em um momento positivo da vida de uma pessoa: por exemplo, quando um homem de origem humilde progride profissionalmente a ponto de poder viajar em férias para longe de casa. Ele pode, de repente, “decidir” que voar é muito perigoso, que ele irá morrer e que por isso não irá mais entrar no avião. É importante registrar que ele, como regra, não passou por nenhuma experiência dolorosa em algum vôo prévio. Tudo leva a crer que se trata de mecanismo essencialmente psicodinâmico, associado à sensação de que ele corre mais perigo agora que está mais feliz e realizado. É como se a felicidade aumentasse o risco efetivo de tragédia e, assim, o medo estaria justificado. O tratamento é feito por meio de terapias cognitivas – explicações acerca dos baixos riscos relacionados com o voar, associadas a visitas a cabinas de comando e outras práticas comuns em alguns centros que existem para tratar dessa fobia – e/ou terapias dinâmicas. O fato é que a pessoa terá, em algum momento, que entrar no avião e enfrentar a situação de medo; nessa hora convém associar medicação anti-depressiva, pois a experiência será menos desagradável e que, nas repetições sucessivas, em um dado momento deverá ser suprimida.
    Na Síndrome do Stress Pós Traumático o que acontece é que uma experiência realmente dramática – seqüestro, assalto com estupro, atos terroristas etc. – se grava de forma muito viva na memória, de modo a ser rememorada periodicamente com o mesmo vigor e igual sofrimento. Trata-se de uma forma de condicionamento tão intenso que o sofrimento volta mesmo sem que tenha havido situação objetiva similar. É como se fosse uma fobia que independa de novos fatos para se reabastecer já que isso acontece por si só. O tratamento ideal é o de acompanharmos a pessoa logo após a vivência traumática, deixando-a falar bastante sobre o assunto, descarregando ao máximo sua dor. Medicação anti-depressiva ajuda a “amolecer” a memória, de modo a que ela aconteça de forma mais suave e tenda a voltar menos vezes e de forma mais suave. Quando atendemos a pessoa muito tempo depois, quando o processo de rememorações já se estabeleceu, a conduta é a de uma terapia interpretativa mais longa com a finalidade de fortalecer a razão delas de modo a serem capazes de lidar melhor com a lembrança que deverá voltar outras vezes, além de eventual medicação sintomática.
    Um exemplo interessante de problema relacionado com a função cerebral desencadeado por processos que nascem na sociedade e na alma, é o das drogadições. Vou me referir apenas à mais comum, que é o tabagismo. Inicialmente depende de questões sociais: nossa sociedade vinha atribuindo ao cigarro uma simbologia toda especial, relacionada com glamour, sucesso com o sexo oposto, irreverência e tantos outros aspectos eróticos capazes de seduzir facilmente a juventude. Trata-se de um processo de sedução induzido pela propaganda – hoje em dia, graças a conhecimento maior que temos a respeito dos malefícios do fumo, toda a sociedade está mobilizada contra esses procedimentos. Acontece que o cigarro encontra terreno fértil em nossa alma, uma vez que é algo que se coloca na boca, algo que, de certa forma, substitui a chupeta. A boca é uma região especialmente sensível desde o início de nossa existência. Ela é responsável por sensações de aconchego e, quando há frustração, desamparo e dor. Assim, alimentos, gomas de mascar, balas e depois o cigarro encontram eco em nossa subjetividade e passam a fazer parte de nossa história amorosa.
    A sociedade atiça nossa vaidade e nos induz ao consumo do cigarro. Nossa alma se sensibiliza com sua chegada e se apega profundamente a ele, o que determina forte dependência psicológica. A nicotina é substância capaz de provocar dependência química, de modo que sua ausência determina sensações desagradáveis, que podem ser intensas, em todo o corpo. Está composto um triângulo infernal, dificílimo de ser resolvido. Explica-se, pois, porque pessoas doentes e plenamente conscientes da necessidade de abandonar o cigarro não o conseguem. O tratamento jamais deveria subestimar qualquer dessas variáveis. A compreensão dos processos sociais e também dos malefícios à saúde ajuda e é tarefa fácil de ser feita nos dias de hoje. A dependência química, em hora oportuna, pode ser amenizada com o uso de gomas de mascar com nicotina – prefiro a goma de mascar aos adesivos justamente porque a boca se entretém um pouco, o que ajuda muito a esquecer o cigarro. Remédios como o Zyban, recentemente introduzidos, ajudam a um certo número de fumantes.
    Do ponto de vista psicológico, tratar de mostrar as complexas relações entre o cigarro e os fenômenos amorosos ajuda muito e pode dar ânimo e coragem para a pessoa se dispor a passar pela dor terrível de ter que renunciar ao cigarro. É como renunciar a um amor por força de uma vontade unilateral, de preferência antes de estar sofrendo dos malefícios que daí derivam. Nada fácil. Juntamente com o trabalho psicodinâmico, convém introduzir variáveis comportamentais, numa seqüência que poderia ser do seguinte tipo: não fumar no dormitório; não fumar no carro; dar um intervalo de pelo menos 12 horas entre o último cigarro da noite e o primeiro da manhã; ir mudando a marca dos cigarros, uma vez que nos apegamos até à embalagem; não fumar enquanto assistimos TV em nossa cadeira favorita, e assim por diante. A própria sociedade tem lançado mão dessas proibições sucessivas, com sucesso relativo e crescente. Ainda assim chegará a hora do “combate final” e sugiro que se espere um momento especial, por exemplo, quando a pessoa está sofrendo de forte gripe, uma vez que é mais fácil abandonar algo que estará piorando muito sua situação. Além do mais, é preciso muita compreensão, pois se trata de um caminho espinhoso, difícil de ser compreendido por quem nunca fumou. Mark Twain, escritor e humorista norte americano costumava dizer: “parar de fumar é fácil; eu mesmo já parei mais de 100 vezes!”


    b) Problemas relacionados mais à alma
    Todos temos algum tipo de lembrança complexa envolvendo nossa infância, especialmente relacionamentos familiares. Um dos problemas mais comuns é aquele que envolve a rivalidade entre um filho pródigo e seu pai. Quantos homens legais não procuram um terapeuta em busca de ajuda porque sempre se sentiram menos queridos do que acham que merecem pelas pessoas em geral e pelos íntimos em particular; estão sempre frustrados porque seus pais, quando vivos, não lhes dá o devido valor. Isso faz um mal terrível à auto-estima dessas criaturas, por vezes tristonhas e cabisbaixas quando poderiam se orgulhar de si e de seus feitos. Problemas dessa ordem, similares a outros que envolvem as relações entre mães e filhas e também rivalidades entre irmãos, são temas especialmente relacionados com a alma – indiretamente têm a ver com a sociedade que nos organizou em famílias e com o corpo que se beneficiou do acasalamento estável para maior chance de sobrevivência da prole. O entendimento de que emoções como ciúme, rivalidades e inveja podem e costumam estar presentes, e de forma predominante, nas relações familiares ajuda muito a pessoa a se conciliar com sua própria história. Nesses casos, o tratamento é essencialmente psicodinâmico e os detalhes de tal tipo de trabalho são dificílimos de serem descritos em poucas palavras, se é que seria possível explicá-las se fosse o caso de escrever longamente sobre ele. O ideal é que cada um aprenda a realizar esse trabalho observando o modo de agir de um profissional mais experiente – que, ainda assim, terá que ser adequado ao modo de ser de cada terapeuta – ou então se submetendo a um processo psicoterapeutico.
    Pessoas de boa formação moral podem vivenciar complexos conflitos quando seus valores entram em choque com os fatos reais ou com sentimentos muito fortes que nascem dentro delas. É o caso, por exemplo, de uma mulher casada e infeliz no matrimônio que se apaixone por outro homem. Caso ela seja portadora de conceitos éticos que impedem a infidelidade, estará diante de complicado dilema e de problemas para decidir o que fazer que podem levar a forte ansiedade, insônia e até mesmo depressão. Dilemas éticos podem acontecer também quando uma mãe tem que se relacionar com uma filha adolescente que se comporta de forma muito diversa daquela que ela aprendeu; isso tanto do ponto de vista de sua vida amorosa e sexual como, por exemplo, se ela decide seguir carreira profissional de natureza artística e isso implicar em se afastar precocemente de casa. As dúvidas surgem sempre que nossas crenças entram em crise e nesses momentos um trabalho psicoterapeutico de tipo psicodinâmico poderá ajudar a pessoa a encontrar novas e melhores formas de lidar com situações que também estão em permanente mudança. Ajudar as pessoas a desenvolver o “cérebro poroso” é tarefa de um terapeuta que também o possua.
    Muitos homens se sentem incomodados, ameaçados e deprimidos quando suas esposas evoluem profissional e financeiramente mais que eles. Entram em crise e, não raro, passam a padecer de algum tipo de dificuldade sexual com elas. Não é incomum que procurem outras mulheres e mesmo que se envolvam com alguma que lhes pareça menos brilhante e menos ameaçadora. Vivem um dilema enorme, pois admiram suas esposas mais que suas amantes mas não conseguem com as esposas a realização sexual que experimentam com elas. Assuntos novos, que rompem velhas crenças e que exigem soluções novas. Tema para psicoterapia dinâmica e oportunidade para maior evolução emocional e mesmo moral. Outras vezes são as mulheres que não sabem se deixam sua carreira de sucesso prosperar porque temem perder seus maridos, que poderiam ficar invejosos e inseguros com o avanço delas. Quantos assuntos podem atormentar a alma! É claro que esses temas têm a ver com o social, mas não com a sociedade atual e sim com o que era a vida familiar até há algumas décadas, de modo que fazem mais do que tudo parte de nossas crenças, importante ingrediente de nossa subjetividade.
    Os dilemas de ordem sentimental ocupam espaço importantíssimo em nossa alma. Temos medo de nos ligar muito intensamente às pessoas, ao mesmo tempo que temos medo de ficar sozinhos. Temos vontade de nos dar bem com nossos pares, mas parece que nos irritamos particularmente com os defeitos deles – é como se eles não os pudessem ter; e mais, chamamos de defeitos aquilo que é diferente do que somos, de modo que nos colocamos como referência de perfeição. O mais curioso é que os escolhemos exatamente por serem como são, de modo que os defeitos nos convinham porque garantiam um certo distanciamento, um encaixe imperfeito que resolvia outros medos relacionados com a plena fusão. Adolescentes sempre se interessam por aqueles que não estão interessados neles; tal procedimento não raramente se estende ao longo da vida, especialmente de mulheres que, ao que tudo indica, não querem se casar, mas não aceitam que essa seja a sua verdade íntima. Ou seja, muitas vezes nos enganamos a respeito de nossas intenções, de modo que um bom modo de sabermos o que exatamente queremos é verificarmos o que, de fato, estamos fazendo e não tanto aquilo que estamos pensando ou desejando.
    Gostaria de salientar ainda mais um assunto, extremamente comum, entre tantos outros que poderia apontar. Trata-se daquilo que se chama de hipocondria, ou seja, um medo crônico e indevido de doenças. O medo é indevido porque a pessoa já esteve se consultando com vários médicos e não se convenceu de que não é portadora de nenhuma doença. Insiste em que passa mal, que sente dores no peito, tonturas, sensações de desmaio iminente, palpitações, extra-sístoles, dores fortíssimas no estômago, diarréia e tudo o mais que podemos sentir quando estamos em pânico. O curioso e importante a ser observado acerca desses casos é que tais pessoas nunca estão efetivamente doentes – aliás, se passam por algum problema físico efetivo, imediatamente param de se queixar dos sintomas próprios da hipocondria. A análise da história de vida dessas pessoas não dá indícios de que a hipocondria seja devida a causas prévias, nem mesmo se explicam em virtude de conflitos e dramas que estejam vivendo atualmente. A regra é que o indivíduo se torne hipocondríaco em algum bom momento de sua vida. Isso é importante para que reflitamos que nossa alma pode se desequilibrar também por motivos positivos, o que não creio que aconteça com o corpo. Nos assustamos quando estamos muito bem, muito felizes. Já disse que parece que isso atrai algum tipo de tragédia, que provoca a ira dos deuses e a inveja dos humanos. O que fazemos? Destruímos, por conta própria, uma boa parte de nossa felicidade por meio da produção de sintomas desagradáveis e medo terrível de que iremos morrer em breve. O mecanismo faz parte do que chamo de medo da felicidade e que é um dos componentes a serem sempre considerados quando estamos diante de questões relacionadas com a alma. Temos medo porque não temos controle sobre as variáveis fundamentais de nossa vida e é essencial que aprendamos a nos posicionar com humildade diante desse fato. Temos que aprender a lidar melhor com a real condição humana, de desamparo e também de relativa insignificância. Esses são grandes problemas para a alma e alguns dos fundamentais temas para os psicoterapeutas em sua vertente psicodinâmica.
    Reafirmo a importância, em todos os casos de psicoterapia psicodinâmica, de tentarmos constituir um foco, uma meta definida a ser perseguida. No caso das fobias e outras questões relacionadas com o corpo, o objetivo é claro e se mostra por si. Nos outros casos, é preciso focar ou na questão da auto-estima, no dilema moral e a necessidade de superar nosso ponto de vista para poder dar solução àquele dado problema prático, no medo da felicidade, na dócil aceitação de que não temos mesmo controle sobre as variáveis fundamentais, e assim por diante. Qualquer avanço em uma área costuma se expandir para as outras. Aquela que mais se beneficia de qualquer avanço íntimo é a das relações interpessoais. O trato com os “outros” melhora sempre que estamos melhor conosco, a não ser naqueles poucos casos em que o problema fundamental tenha a ver com isso – crianças que foram rejeitadas por colegas na escola porque eram diferentes da média, estrangeiros que mudam de país e têm dificuldades com a nova língua etc.



    c) Problemas relacionados mais com a sociedade

    Já registrei o impacto negativo sobre as moças jovens e inexperientes, sedentas de um lugar ao sol no jogo erótico que se estabelece entre elas na conquista dos rapazes mais disputados, produzido pelas imagens de modelos e símbolos sexuais femininas altas e magérrimas. É ínfima a proporção de moças que naturalmente se aproximam desse modelo, hoje tido como ideal – sim, porque até há poucas décadas a mulher atraente era aquela em que as formas realçavam, o que implicava em uns 10% de peso a mais do que hoje; e já foi muito mais. O peso ideal e a aparência física mais atraente são definidos pela cultura, segundo critérios variados, que vão desde sinais de prosperidade, passando por aquilo que se acredita ser bom para a saúde e chegando perto dos interesses comerciais da indústria de roupas e cosméticos em geral.
    O fato é que as moças que não estão de acordo com o padrão – quase todas – se sentem muito mal, inferiorizadas e menos atraentes ainda que despertem o interesse de um bom número de rapazes. Elas todas desejariam ser as mais belas, sem perceber que isso é impossível e não tão relevante. Mas quem conversa com uma adolescente sabe que nada é mais importante que estar em sintonia com o que pensam e o modo como se comportam os seus pares. Assim sendo, praticamente todas as moças passam a fazer dietas com o intuito de perder peso e estarem de acordo com o padrão atual. Quando não conseguem o grau de sacrifício necessário, passam a vomitar após as refeições ou sempre que comem algo “proibido”. Outras se sentem encantadas com o poder que desenvolvem de dominar seu apetite, de modo que praticamente não se alimentam por dias seguidos. Se sentem orgulhosas com sua disciplina e força de vontade e isso se torna mais importante que tudo. Passam a perder peso indefinidamente, definhando e adoecendo. Desenvolvem um quadro difícil de reverter, pois acabam por “adorar” sua competência para jejuar.
    O tratamento, nesses casos cada vez mais freqüentes e complexos, passa por uma fase cognitiva, onde é preciso explicar que estão pensando mal a respeito das “ordens” que estão recebendo de fora, que nem tudo é para ser obedecido ao pé da letra, que não existem represálias para os transgressores desse tipo de solicitação do meio. Passa depois para uma fase dinâmica e interpretativa das questões relativas à vida afetiva, necessidade de ser aceito pelo grupo, desejo de sucesso social, especialmente com o sexo oposto, necessidade de auto-afirmação e tantas outras questões básicas para quem está iniciando a vida adulta. Nos casos mais graves, especialmente de anorexia nervosa, é necessária a internação hospitalar, alimentação por via intra-venosa e medicação antidepressiva para desfazer este quadro que mais parece um transtorno obsessivo. No caso da bulimia, os resultados costumam ser mais fáceis de serem atingidos, mas a experiência ensina que há forte tendência à reincidência: cada vez que a moça engorda um pouco mais, volta a vomitar. É como se tivesse aprendido a “roubar” no jogo das calorias. O tratamento deve, por vezes, se estender um pouco mais justamente para tratar desse aspecto “moral”. Existe também a necessidade de um trabalho de linhagem comportamental ligado à mudança definitiva de hábitos alimentares. Já disse e repito que estabelecer associações e criar hábitos é muito fácil. Desfazê-los é tarefa difícil e cheia de dificuldades. Nem por isso devemos nos acomodar e deixar de nos empenharmos ao máximo no sentido de ajudar o paciente a alterar todos os hábitos inadequados.
    Outro tipo de dificuldade, essencialmente masculina, é a relativa ao pleno exercício da função sexual justamente em virtude deles se sentirem excessivamente exigidos nessa área. Ouvimos, desde sempre, que um homem de verdade não recusa situações eróticas, que não sente medo e nem evita uma mulher em hipótese alguma, que deverá ser capaz de ter não sei quantas relações em seguida, e assim por diante. Enfim, crescemos com a idéia grosseira de que “quanto mais, melhor” e que jamais deveríamos dizer “não” a uma mulher. Isso seria coisa de maricas! Vejam a situação dos homens, especialmente os mais delicados: têm que desempenhar sempre de acordo com a expectativa que o meio social tem deles; o pior é que nem sempre conseguem. Aí, fracassam. A sensação é desastrosa e terrível. Em qualquer outra situação, mesmo mais adequada, o pavor de novos fracassos passa a perseguir aquele que um dia fracassou – é incrível, mas o homem quando não consegue manter a ereção e ter a relação sexual numa situação específica generaliza sua experiência e sua ansiedade de modo que passa a duvidar sistematicamente de sua virilidade.
    Acontece que o medo de fracassar se torna a principal causa de novos fracassos. Sim, porque o homem vai para cada relacionamento ansioso e com medo, o que implica em vaso-constricção, o oposto do que é necessário para que haja a ereção. Se não conseguir reduzir a ansiedade, o que depende muito do comportamento da mulher com quem ele está, não conseguirá manter a relação normal outra vez. Isso pode se tornar rotina e a dificuldade tende a crescer. Esses homens têm ereção normal quando dormem, quando estão mantendo intimidades com uma mulher longe da situação de terem que ir para a cama – num baile, por exemplo. Ou seja, não necessitam de exames urológicos para sabermos que estão fisicamente bem. Técnicas comportamentais variadas, desenvolvidas desde o fim dos anos 60 a partir dos trabalhos de Masters e Johnson, são muito eficientes para reduzir a ansiedade associada à situação erótica e recriar condições positivas para o exercício da função erótica. Elas passam por pedir ao homem que tenha uma companheira cooperativa, com quem possa reaprender – ou aprender – a ficar na cama sem se sentir obrigado a nada – conforme o caso, convém proibi-lo de ir para além de certas carícias mais superficiais, o que o deixará ainda mais calmo – até que seja capaz de recuperar a serenidade e a autoconfiança.
    Hoje em dia as pessoas têm se socorrido de medicamentos tipo Viagra, vasodilatadores da região peniana, que ajudariam a manter a ereção, já que atuam na direção oposta à da ansiedade e do medo. Eles substituiriam as técnicas de tipo comportamental, com a desvantagem de que a pessoa tende a se tornar um tanto dependente da medicação. É aí que entra como elemento fundamental, ao menos do meu ponto de vista, a psicoterapia dinâmica, que conduziria o paciente a trabalhar essa terrível e indevida dependência, presente na grande maioria dos homens, de sua competência sexual. Ou seja, não tem cabimento que nossa auto-estima e orgulho pessoal esteja vinculada ao nosso desempenho sexual. Isso, no mínimo, deixa os homens extremamente fracos perante as mulheres; mais precisamente, mostra a fraqueza que sentimos em relação a elas, assunto que é um dos temas da psicoterapia. Uma postura nova, mais independente e menos preocupada com desempenho e com o jogo de poder entre os sexos, é indispensável para a resolução dessa dificuldade no longo prazo.
    De uma forma geral, podemos dizer que, aqui como em tantos outros tipos de problemas descritos, os medicamentos tendem a substituir as terapias comportamentais. No que diz respeito à psicoterapia de caráter dinâmico, ela me parece cada vez mais necessária e insubstituível, especialmente quando se pretende consolidar resultados no longo prazo e quando se pretende tirar lições mais profundas e definitivas dos sofrimentos que a vida nos impõe.
    O meio social influencia bastante na formação de uma personalidade predisposta à homossexualidade masculina. Na medida que vivemos num meio que considera parte da virilidade o menino ser portador de uma certa dose de agressividade, competência para revidar quando objeto de ironias e brincadeiras violentas, essa mesma sociedade faz com que aqueles meninos mais delicados e medrosos, mais sensíveis e menos competentes para situações agressivas, cresçam com dúvidas acerca de sua virilidade, sendo chamado por apelidos que indicam sua futura predisposição homossexual. Chegam à puberdade inseguros, com medo de fracassar. Se isso acontecer, ou mesmo se o medo for maior que a coragem para procurar uma mulher, o rapaz não terá mais dúvidas: é homossexual! Ainda mais se for bonito e perceber que é desejado por outros homens mais velhos e que já estão encaminhados nessa direção. Trata-se de mais um caso em que a profecia parece se auto-realizar. Tendo da homossexualidade uma visão desse tipo, é claro que acho possível tratá-la; isso para aqueles que efetivamente assim o desejarem.
    Inúmeros outros problemas emocionais derivam de pressões sociais relacionadas com o preenchimento de um padrão médio que não serve para todos. Os que são mais baixos do que o usual da população são objeto de ironias e brincadeiras desde crianças, condição incômoda e humilhante. Tentam disfarçar a violência com que sentem o golpe e tendem a se transformar em adultos ressentidos, vingativos e muito ambiciosos. O mesmo acontece com aqueles que são mais gordos, mais altos, que tem os cabelos de um tipo que não está entre os corriqueiros, o que fala com a língua presa etc. As pressões são tantas e tão variadas que os sentimentos de inferioridade podem ser considerados como universais. Eles são responsáveis por sérias dificuldades de socialização que se manifestam em muitos dos que não forem capazes de encontrar melhor solução para suas mágoas: tendem a ser retraídos e agirem como rejeitados por antecipação, outra profecia que se auto-realiza, já que o que se coloca assim defensivamente aparece aos olhos dos “outros” como arrogante e pretensioso, o que desperta sentimentos negativos.
    Muitos se tornam extraordinariamente tímidos, sempre achando que não irão agradar e que sua presença será tida como um incômodo para as outras pessoas. Tentam ocupar o mínimo de espaço possível e se retraem, o que determina reações pouco simpáticas por parte dos interlocutores, o que reforça a postura cada vez mais defensiva. Os tratamentos nesses casos têm que ser de tipo psicodinâmico, tentando, através da própria vivência terapêutica, alterar o ponto de vista da pessoa a respeito de si mesma. A psicoterapia terá que ser uma “experiência emocional corretiva”, para usar a expressão de F. Alexander: o paciente irá se comportar como é, se mostrar como, de fato, é, e perceberá que pode despertar sentimentos positivos sinceros por parte do terapeuta. Vivências desse tipo neutralizam e desorganizam pontos de vista cristalizados na subjetividade do paciente. Aliás, todos os procedimentos terapêuticos deveriam conter, entre os seus vários ingredientes, esse do indivíduo se sentir aceito e respeitado do modo como efetivamente é. Isso só pode acontecer se o terapeuta não for pessoa crítica e nem se arvorar em juiz.
    A timidez radical é, por vezes, fenômeno mais complexo, encobrindo dificuldades específicas da área sexual ou mesmo fazendo parte de um tipo de personalidade chamada de esquizóide, onde dificuldades de comunicação derivam de supostas alterações cerebrais de caráter genético. Não são freqüentes e escapam aos objetivos desse trabalho, uma vez que não poderiam ser tratadas a não ser por psicoterapias sem prazo definido, além de eventual acompanhamento medicamentoso. Quando existem causas definidas escondidas por trás das dificuldades de convívio social, convém tratá-las primeiro para ver se a inibição no trato com as outras pessoas não se dissolve por si.

    Nota
    Cabe registrar o que não convém tratar por meio de psicoterapias breves. Meu ponto de vista é o de que todas as terapias de longo prazo deveriam se basear em premissas similares às apontadas acima: uma base teórica eclética, um projeto definido de trabalho proposto e praticado por um terapeuta humano, sensato, empático, ousado e maduro emocional e moralmente. Porém, há distúrbios que sabemos, pela experiência, que exigem mais tempo de convívio, falta total de pressão de resultado em um dado tempo e enorme paciência e persistência por parte do terapeuta e do cliente. Entre os casos que se enquadram nessa categoria, cito: narcisismo (narcisismo patológico na linguagem de alguns autores, tais como Kernberg; do meu ponto de vista, narcisismo é sempre patológico, pois corresponde a egoísmo, baixa auto-estima e descontrole de emoções, especialmente agressivas) e todos os outros distúrbios de personalidade mais graves. Vale o mesmo para os transtornos obsessivo-compulsivos, que exigem tratamento mais longo, uso de medicações antidepressivas e eventuais recursos comportamentais. Dentre as questões que envolvem os sentimentos amorosos, as histórias de paixão por vezes exigem tratamentos prolongados e muita paciência, uma vez que as pessoas costumam encontrar grandes dificuldades em resolver os dilemas triangulares usuais nesses casos. Como já apontei, o tratamento dos casos de homossexualidade, quando é essa a vontade do paciente – e só nesses casos é que cabe tratamento – requer perícia, paciência e persistência por parte das duas partes envolvidas no trabalho.

    SUMÁRIO


    1. O presente texto faz um relato histórico sucinto e pessoal de como foram as minhas vivências e reflexões acerca dos processos psicoterapêuticos ao longo do século XX e em especial no período correspondente aos últimos 40 anos, por mim acompanhados pessoalmente. Faço um relato da evolução do pensamento psicanalítico e também das reflexões ligadas aos tratamentos de base comportamental. Mostro como muitas técnicas foram construídas graças à influência do pragmatismo norte-americano, de modo a desembocar em um tipo de tratamento não comprometido com nenhuma escola específica e que aqui estou chamando de psicoterapia breve sem escola.
    2. O fundamento teórico para um trabalho desse tipo não implica em ausência de formação teórica. Ao contrário, passa por uma mente aberta e porosa capaz de incorporar aspectos positivos e geradores de bons resultados práticos presentes em todos os tipos de psicoterapia. Em essência, pode ser definido como respeito ao paradigma de que somos seres bio-psico-sociais, expressão corriqueira mas difícil de ser entendida em toda sua profundidade. Pretendo mostrar em algum detalhe as características correspondentes a esse modo de ser que nos faz ter como “natureza” o fato de não termos natureza fixa. Descrevo como cada um desses elementos da tríade interfere sobre os diversos tipos de problemas e patologias que temos que nos haver em nossa prática quotidiana, mostrando sempre a enorme inter-relação que existe entre os três segmentos que nos constituem.
    3. Analiso em seguida as peculiaridades essenciais de um bom terapeuta, aquele preparado para melhor ajudar seus pacientes. Isso parece ser mais importante do que a escola a que o terapeuta se filia. Entre as competências fundamentais estão a boa capacidade de estabelecer uma relação empática – entendida como capacidade de entrar na alma do outro e não apenas se colocar no lugar do outro –, além de adequada evolução emocional e moral. O bom terapeuta tem que ser ousado, sem medo de errar e principalmente sem problemas para reconhecer o erro e aprender com ele. Não deve olhar seu paciente como alguém a ser catalogado segundo critérios preexistentes. Idealmente deveria “esquecer” tudo o que sabe para melhor ouví-los de uma forma que seja livre de idéias pré-concebidas.
    4. A primeira consulta em tratamentos desse tipo é de fundamental importância, pois será o momento em que o terapeuta se deixará conhecer, sendo essencial que se mostre como é, sincero e confiável – se assim o for. O paciente terá que se sentir seguro, porém o terapeuta terá que ser cauteloso nas interpretações de modo não assustá-lo e intimidá-lo. O mais importante é que ambos, em conjunto, sejam capazes de chegar a um acordo a respeito de um projeto de trabalho que implique na escolha de um tema específico a ser abordado com a finalidade de poder limitar o trabalho a um número relativamente baixo de consultas e também com o intuito de aumentar a eficiência do próprio processo terapêutico. O trabalho psicoterapêutico poderá se estender para além do prazo previsto e mesmo depois de atingidos os objetivos propostos; só que agora se trata de um processo facultativo, dependente do interesse e fascínio que o paciente tenha desenvolvido pelo autoconhecimento.
    5. Em termos bastante genéricos são descritos vários tipos de procedimentos terapêuticos relacionados com o tipo de visão que desenvolvi em decorrência da enorme experiência clínica que acumulei ao longo de quase 40 anos de trabalho. Muitos casos se beneficiam mais de tratamentos de caráter comportamental e também cognitivo-comportamental. Outros são muito facilitados pelo uso concomitante de medicamentos. Muitas vezes o uso de fármacos substitui o trabalho de tipo comportamental. Quase todos os pacientes se beneficiam de algumas sessões de caráter dinâmico, onde são discutidos elementos históricos capazes de explicar, ao menos em parte, o que vivenciam hoje e construir propostas claras de mudanças para o futuro. Outras vezes o que se busca é a experiência emocional corretiva no seio do próprio contexto da relação profissional-paciente, base para mudanças que tendem a se estender para todos os domínios da vida da pessoa. De todo o modo, espera-se que um bom resultado naquilo que foi focado seja capaz de se espalhar, trazendo progressos em outras áreas da vida emocional e prática do paciente.

    Flávio Gikovate, médico psiquiatra, psicoterapeuta e escritor





    Livros Recomendados:
    Alexander, F. e French, T. (1965). Terapeutica Psicoanalítica. Buenos Aires: Editora Paidós.
    Bauman, Z. (2001). Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.
    Bowlby, J. (1982). Attachment. New York: Basic Books.
    Dobson, K.S. (2001). Handbook og Cognitive Behavioral Therapies. New York: The Guilford Press.
    Ferenczi, S. (1991). Obras Completas – Psicanálise I. São Paulo: Editora Martins Fontes.
    Gikovate, F. (1989). Homem: O Sexo Frágil? São Paulo: MG Editores.
    _______ (1990). Cigarro: Um Adeus Possível. São Paulo: MG Editores.
    _______ (2000). A Liberdade Possível. São Paulo: MG Editores.
    _______ Corpo, Alma e Sociedade. Artigo em site: (www.flaviogikovate.com.br).
    Gunderson, J. G. e Gabbard, G. O. (2000). Psychotherapy for Personality Disorders. Washington: American Psychiatric Press.
    Groves, J. E. (ed.) (1996). Essential Papers on Short-term Dynamic Therapy. N.York: N.York University Press.
    Halpern, J. (2001). From Detached Concern to Empathy. New York: Oxford University Press.
    Ortega Y Gasset, J. (1971). Historia como Sistema. Madrid: Espasa-Calpe S.A..
    _______ (1940). Ideas Y Creencias. Buenos Aires: Espasa-Calpe Argentina S.A..
    Rank, O. (1996). A Psychology of Difference. Princeton: Princeton University Press.
    Savater, F. (2003). El Valor de Elegir. Barcelona: Ariel.
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    As Bases Gnósticas do Pensamento de Jung:a teogonia de jung, sophia...

    As Bases Gnósticas do Pensamento de Jung
    Heloisa Cardoso*

    I - INTRODUÇÃO:
    A gnose atua sempre como uma subcorrente em relação ao pensamento hegemônico. Ela é o que se mantém oculto, no pólo dialético do ocultar-revelando e do revelar-ocultando, exigindo, desse modo, uma análise hermenêutica para o entendimento de seus pressupostos. Representa, assim, do ponto de vista da compreensão do homem e do mundo, a contracultura e as heresias em cada época, e possivelmente a semente do novo, do que está por vir.
    A emergência de uma atitude gnóstica ocorre em relação às questões não respondidas, pelo paradigma hegemônico, e à perda do sentido da vida, com o desmoronamento dos valores, das culturas e instituições. Quando o paradigma já não é mais um referencial operante, quando se carecem de novos pressupostos e novas idéias; então, retoma-se o processo de conscientização para a subida em uma oitava superior, da qual o mito de Prometeu é uma metáfora.
    A gnose pode manifestar-se na religião, na filosofia e na política (o mito do salvador da pátria = Hitler). A missão gnóstica é a de revelar o saber oculto, substituindo as trevas pela luz que amplie os níveis de consciência da humanidade. Foram gnoses religiosas: as de Alexandria, o cristianismo, o luteranismo, na atualidade os Brahma Kumaris etc. Nas gnoses filosóficas podem-se incluir o positivismo, o paradigma emergente, os estóicos, Hegel (e o Espírito alienado), Marx (e a dialética de exclusão entre opressores e oprimidos), Nietzshe (com a proclamação da morte de Deuse suas críticas ao racionalismo e ao cristianismo), Heidegger (e o Dasein), Jung (com seus arquétipos do inconsciente coletivo). Entre as gnoses políticas, o marxismo (em suas aplicações à praxis), Bakunin, Lênin, Sorel e o princípio do poder, o fascismo, enfim todas as “mystiques politiques” ou as “religiões políticas” etc.
    O pressuposto metafísico da gnose institui o que está em cima como o que está embaixo; o que está dentro, como o que está fora: o microcosmo refletindo o macrocosmo, consoante a fórmula do CORPUS HERMETICUM. Trata-se, então, de estabelecer as correlações e analogias entre as duas realidades que, na verdade, expressam a mesma essência.
    Do ponto de vista religioso, duas concepções se defrontam com dinâmicas bem diferentes: a religião como religare e como relegere - a primeira caracterizando o aspecto salvador da religião pela fé; a segunda, tentando promover a busca e o encontro com Deus, pelo conhecimento. Trata-se, nesta, do esforço libertador do autoconhecimento; naquela, do messianismo pela salvação coletiva através da fé. Confrontam-se, assim, as religiões oficiais e até de Estado e as religiões de mistérios, de sentido iniciático (os mistérios eleusinos, dionisíacos, órficos, na Grécia; o mitraico, adotado depois pelos militares de Roma; o culto praticado por escravos, o cristianismo em sua origem, o gênero apocalíptico, o maniqueísmo e outras).
    Para o gnóstico não há questão proibida, tema tabu ou dogma, menos ainda a verdade revelada através de profetas ou oráculos. Assim, uma característica da gnose religiosa é a eliminação do intermediário autorizado (padre, ministro, pastor...) e a tentativa da experiência direta e, portanto, mística, de Deus. O pressuposto é o da imanência de Deus, habitando na alma humana, sendo dela o mais importante parceiro.
    Na verdade o gnóstico já não é mais o buscador, aquele que está à procura das respostas: Ele já tem as respostas. Cristo disse: “Conhecei a verdade e Ela vos libertará!” Os gregos proclamavam: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás a Deus”.
    A dicotomia entre essas duas concepções se concretizava, principalmente, pela existência de religiões oficiais ou de Estado versus as religiões de mistérios e o ritos de iniciação. Na verdade, a gnose é uma vivência mais que um simples conhecimento intelectual.
    A grande questão, pois, colocada à indagação e ao coração do homem é a da origem da dor e do sofrimento do mundo. O próprio abandono do termo grego kosmos - que significa beleza - substituído pelo termo latino mundo, que era o buraco onde se jogavam os detritos na antiga Roma, é um poderoso indicador da radical mudança que se operara no inconsciente coletivo, na passagem do mundo pagão para o mundo cristão. O cristianismo fundou toda uma ética na base da dualidade entre corpo e alma, matéria e espírito, imanência e transcendência, anulando qualquer valor aos termos iniciais dos pares de opostos, tornando unilateral o desenvolvimento do espírito humano e, como adverte Jung, em certo sentido reprimiu seu lado sombrio, projetando-o em forças metafísicas, representantes do Mal.
    E a queixa dos filhos de Raquel encontra eco em suas lamentações: “Quem nos jogou nas trevas” “Quem éramos nós?” “Onde estávamos?” “De onde fomos expulsos?” “Aonde nos precipitamos?” “De que temos de nos livrar para o retorno à nossa morada?” Estas são as eternas questões que todos os gnósticos se colocam, em qualquer época histórica, em qualquer latitude do Planeta.
    E a resposta/explicação também é sempre a mesma: a verdadeira vida não é deste mundo, pertence aos mundos siderais - ao Paraíso, ao Cosmos, ao Nirvana, ao WU-CHI (não-sopro, vazio) etc. O mundo em que vivemos não passa de uma prisão para o espírito que vive o sentimento de ter sido expulso, de que está alienado, mas que experiencia a dialética dolorosa de querer fugir ao mundo e, ao mesmo tempo, dele tem medo de liberar-se.
    Essa angústia ou leva o Homem ao desespero niilista, daquele que perdeu o contato com suas fontes superiores, ou força o caminho na busca do mito pessoal, daquele significado que torna toda vida digna de ser vivida e todo homem merecedor do respeito devido a seu ser consciente.
    Inerente à essa última postura, coloca-se o mito da SALVAÇÃO, quer pelo Divino Mediador - Jesus, o Cristo - quer pela fé no encontro direto entre o Deus Transcendente e o Deus Imanente, a centelha de que todo homem é portador, e que estabelece o trânsito entre a dimensão temporal de nossa consciência corpórea e a eternidade, a dimensão própria do espírito.
    As etapas da SALVAÇÃO passam por dois tipos de atitudes opostas: aquelas que se refugiam em práticas mágicas, revelando a crença egóica da possibilidade da interferência do Homem no Drama Cósmico; e aquelas que se referem ao êxtase místico, onde o abandono total do ego (o ascetismo), permite que o Self se manifeste, ativando a imago Dei, presente no recôndito da alma humana. Trata-se, portanto, de construir uma nova imagem do Homem...
    Da mesma forma, do liberalismo ao indiferentismo ou ao ascetismo, a questão é sempre a de matar o homem velho, o mundo velho, de abandonar as velhas crenças e estruturas para se fazer nascer o homem novo, o mundo novo, perfazendo o caminho da agnóia (ou ignorância) à gnose (ou conhecimento). Este é o caminho da verdadeira SALVAÇÃO. Há, no entanto, pontos de vista divergentes, que não admitem a possibilidade da salvação, como os de Mani, concebendo uma luta cósmica infindável entre as forças da luz e das trevas, do bem e do mal, consagrando de vez um dualismo que até hoje se faz presente.
    Como já dissemos, para o gnóstico não há pergunta proibida, não há tema tabu ou dogma, quando a civilização está em crise e o paradigma já não é mais um referencial. Nesses momentos surgirão vozes que falarão no deserto, mas que de qualquer forma indicarão o novo caminho e a boa nova. Assim foi com o ramo cristão do judaísmo, assim será na Nova Era que se avizinha, sedenta de novas sínteses, que derrubem os muros da incompreensão e coloquem as pontes da fraternidade, do amor e da paz. Até porque o século XXI será espiritual ou não será...
    Urge um novo nível de consciência, a partir desse processo de conscientização individual e coletivo, que represente uma nova vinda de Prometeu com o fogo revivido do céu. Assim, a melhor postura de análise é a gnóstica, pois ela não se fecha em nenhum conhecimento, ou tradição; pelo contrário, busca sempre a revelação nas oitavas superiores, pois não se deixa levar pelas aparências do momento, nem pelas limitações pessoais. Lá onde o UM impera, o ensinamento flui sem reservas para todo aquele que ousar ouvir o coração do Eterno.

    II - A GNOSE COMO ATITUDE ANTE A VIDA
    Gnose, em grego, significa conhecimento e seu estudo como epistemologia ou teoria do conhecimento integra o campo da filosofia na atualidade. No presente texto, aludimos a uma concepção específica da gnose, cujas características passamos a enunciar.
    O conhecimento ou a gnose surge como atitude ante a vida todas as vezes em que se carecem de novas estruturas intelectuais para compreender certas realidades. Quando novas questões são colocadas e novas respostas se tornam urgentes, homens e mulheres tentam a ultrapassagem do já constituído para instituir o novo mais abrangente, mais condizente.
    Tanto movimentos espirituais, como reações de massa, podem significar que se está clamando por uma nova subida do nível de consciência coletiva, o que poderá ser constelado em um homem ou em grupo que afine seus ideais de vida, seus sonhos comuns.
    E por que a atitude gnóstica tem este sabor de heresia (etimologicamente = aquele que pode escolher) e a de Alexandria foi assim efetivamente considerada? A resposta é simples, porque homens e mulheres, que ousam pensar e fazer de sua consciência o tribunal em que - como lembra Jung - se é ao mesmo tempo réu e juiz, tornam-se ameaça à ordem e ao poder constituído.
    Do ponto de vista individual, quando se perde o sentido da vida, quando ruem os valores da moral convencional, quando as instituições já não mais atendem a seus objetivos, estabelece-se a busca. O mito da busca é a decorrência necessária do desconforto que sente o gnóstico diante da perda do paraíso pela queda ou exílio. E essa busca não tem apenas o sentido transcendente do misticismo religioso, ela também se manifesta no plano da matéria, como procura de um significado e de um entendimento para o Mal e para a Injustiça.
    Mas não se trata apenas de novos referenciais teóricos: a gnose é sobretudo uma vivência, uma prática. O que caracteriza a vivência gnóstica é a percepção do mundo como algo estranho, sendo o homem um errante, à procura do retorno à sua verdadeira morada. Este é o sentido profundo da palavra ética em sua origem grega: hthos, isto é, a morada do homem. A gnose como atitude ante a vida deve ser utilizada não só em situações pessoais, mas em quaisquer eventos à nossa volta.
    Sem dúvida uma questão instigante é saber se, em vez de ter prevalecido os cânones da Igreja Romana, o gnosticismo tivesse sobrevivido. De que forma isto teria afetado a cristandade e o Ocidente em geral?...

    III - DA GNOSE AO GNOSTICISMO:
    A gnose pode manifestar-se de modos diferentes, segundo a época em que emerge e as circunstâncias que lhe dão origem e significância. Assim, pode-se falar em gnoses pré-cristãs e pós-cristãs; em gnoses ascendentes e descendentes, intelectualistas ou pseudo-gnoses. Pensadores como Goethe, Marx, Nietzsche, Heidegger estruturaram sistemas gnósticos, tanto quanto Blavatski e Rudolf Steiner. Como sistema filosófico ou político, o gnosticimo aparece todas as vezes em que as circunstâncias retratam o esgotamento de uma dada situação.
    Na história, os essênios entre os judeus, movimentos neo-pagãos, em Alexandria, novos mitos e até religiões políticas, a partir principalmente do Renascimento, surgiram, quer como parte do fenômeno das heresias, quer como novas interpretações da história do espírito humano.
    Hoeller mostra que os essênios representavam, de fato, um judaísmo pré-cristão de caráter gnóstico, organizados em comunidades espalhadas, a partir da sede em Qumram, abarcando o Egito - Alexandria, portanto - toda a Judéia, atingindo Roma e a Ásia Menor. Tal organização era a matriz perfeita para abrigar o novo credo que se formava, sob a liderança de Jesus, provavelmente, o Mestre da Retidão, de que os essênios falavam (1990:47). Para maiores detalhes consultar OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO, de Laperrousaz, s/d.
    A gnose, como gnosticismo cristão, ocorreu entre o séculos II a V d.C. Como maniqueismo, ela se revela em todas as visões de mundo que promovem o embate entre as forças da luz e a das trevas, entre o Bem e o Mal, em seu sentido metafísico e absoluto. Como alquimia, na Idade Média européia, debruçou-se sobre uma tarefa que era verdadeira reviravolta de 180o graus, em relação à visão cristã oficial: não era mais Deus a salvar o homem de seus pecados, mas o homem a resgatar Deus do abraço mortal com a matéria, através da Magna Opus. Como kaballah, a gnose era um conhecimento reservado a poucos iniciados nos mistérios da língua hebraica e de seus símbolos revelados metaforicamente no Antigo Testamento. Constitui seu aspecto místico.
    É bem verdade que houve diversas manifestações de gnose, tornando difícil falar desse movimento como uma unidade. Podemos perceber uma gnose mágica associada ao nome de Simão, o Mago, que se fazia acompanhar de uma prostituta que acreditava ser a encarnação da divina Helena, de Tróia (citado nos ATOS DOS APÓSTOLOS, no NOVO TESTAMENTO); ao lado da gnose mística e de práticas pneumáticas ou mediúnicas (hoje campo de estudos da parapsicologia).
    Várias seitas iniciáticas se constituem em outras tantas gnoses, a saber: o templarismo, o catarismo, a maçonaria, o rosacrucianismo, a teosofia, a antroposofia etc. Todas entendem a gnose como auto-iluminação.
    No presente texto, nosso interesse central é o sistema filosófico que se expandiu em Alexandria - a cidade, segundo Jung, em que o Oriente e o Ocidente se encontram - conhecido como a gnose de Alexandria, movimento carismático dos primeiros tempos do cristianismo. Nela coexistiam alguns tipos de gnose: a gnose mágica ou mística, a filosófica; a ofita ou naassena; a ascética ou liberal. A gnose ofita ou naassena, com seus adoradores da serpente (vide a serpente como símbolo do Cristo, citado em JUNG, C.G. SÍMBOLOS DA TRANSFORMAÇÃO, 1989), considera-a o divino canal pelo qual a consciência manifestou-se ao Homem; ao lado de vertentes ascéticas e de moral rígida, celibatárias, com alimentação especial etc. (como a de Marcião) e liberais, em que os excessos eram permitidos, no pressuposto de que o que quer que acontecesse ao corpo não poderia, de forma alguma, afetar a alma.


    IV - A GNOSE DE ALEXANDRIA:
    Os principais representantes da gnose de Alexandria (séc. II a V d.C.) são Valentino, Basilides, Carpócrates e Marcião.. “Quem nos jogou nas trevas?” A grande questão, pois, colocada à indagação e ao coração do homem é a da origem da dor e do sofrimento do mundo.
    A resposta era dada mediante inspirações literárias e míticas, das quais destacamos quatro mitos:
    1) o mito do paraíso perdido (o inconsciente urobórico);
    2) o mito da queda ou da exclusão (a queda angélica e a queda adâmica = paralelo ao conceito grego da hybris X metron = não o mal no sentido ético do termo. O abandono pela família, como início do processo de individuação);
    3) o mito da busca (sensação de alienação e de ter sido expulso, o herói ou a alma enfrentando as dificuldades e a aventura da vida);
    4) o mito do eterno retorno (o estranhamento e fuga deste mundo - introspecção necessária à individuação), a sensação de ser errante ou estar de passagem; a sensação do déja-vu (teoria da reminiscência de Platão: toda lembrança é uma recordação); a necessidade de retorno à origem e à verdadeira vida dos espaços siderais - Cosmos, Paraíso, Nirvana (o medo da volta).

    Desse ponto de vista mítico, as almas mais puras guardam a lembrança de sua origem divina e a ela querem retornar. Marcião funda uma seita religiosa, com base em práticas ascéticas e moral rígida, pelo pressuposto de que o corpo devia tornar-se sagrado, por ser o templo do Espírito nele aprisionado.
    A atitude gnóstica não reconhece um mundo que é uma prisão. O gnosticismo busca o reconhecimento do que éramos, do que fomos, de onde estávamos, de onde fomos expulsos, aonde nos precipitamos e do que temos de nos livrar e renascer pelo impulso salvador do espírito (pneuma): “Não se põe vinho novo em odre velho”...Mito de morte e renascimento...
    Que ensinavam estes mestres? Que havia um Deus supremo, increado, que era o máximo de Unidade. Que Deus não havia criado o mundo, mas este havia sido emanado de sua Sophia, segundo um mito gnóstico, através de desdobramentos (emanações) numa série complexa de entidades intermediárias - espíritos inferiores - que terminariam, estes sim, por criar o mundo.
    Assim, o desprezo dos gnósticos era pelo kosmos do Demiurgo e não pela Natureza, onde Deus habita. Cultivavam, pois, a idéia de um deus imanente (o Anthropos), idéia que foi incorporada pelos alquimistas como a lumen naturae (a luz da Natureza). Na psicologia analítica, representa os instintos e o inconsciente. Cumpria salvar o homem do mundo, que nem era um cosmos, nem criação de Deus, diferençando-se os gnósticos, tanto dos gregos como do judaísmo-cristão sobre a questão da origem do mundo.
    Teoria da emanação antes que da criação, nela já há um primeiro confronto com o que viria a ser a ortodoxia apostólica e seus pressupostos de crença: DEUS, a CRIAÇÃO e a REVELAÇÃO, através de alguns intermediários autorizados, os primeiros dos quais naturalmente os apóstolos, entre eles os que viriam a compor os evangelhos canônicos.
    Para Carpócrates as almas humanas seriam anteriores à produção do mundo, tendo vivido, portanto no seio da divindade e experimentado a máxima Unidade (influência da teoria platônica das formas puras). Basilides supõe que as entidades divinas, vivendo no Estereoma celeste, teriam engendrado o primeiro ARCONTE e suas principais entidades (os éons). As principais emanações do Absoluto seriam: Sofia ou o lado feminino e criador de Deus: a sabedoria divina (sophos = Sábio), seu amor e misericórdia como a redentora do homem; o Nous, a inteligência e a sabedoria divina que rege todos os processos do universo; o Logos, isto é, o dizer, o Verbo que, ao nomear, impregna o ente de significação; a Energueia, a energia criadora; a Dynamis, como a força, o movimento universal, a Aletheia, a verdade, a descoberta (fonte do Logos, como princípio constitutivo da coesão e da Vida) e a Phronesis, discernimento e inteligência prática responsável pelo mundo da manifestação. Elas seriam os arcontes ou regentes do mundo, seus primeiros éons.
    Com a criação do mundo pelo Demiurgo (YALDABAOTH ou JAVÉ), diz a gnose mítica que Sofia, desejosa de conhecer todos os meandros do Pai, cai nos mundos inferiores da matéria, apaixona-se e é por ela abraçada, não podendo mais afastar-se do convívio dos homens, também eles decaídos.
    Por esse mito - das centelhas de luz (espírito) presas na matéria - se configuraria a possibilidade do Absoluto de, ao contemplar o Abismo, ter se entristecido com o “Não-Ser”, tendo suas lágrimas derramadas se transformado em centelhas de luz que se aprisionaram à realidade física. A alma e o espírito do homem... E o Eterno Deus Altíssimo sonhou ainda por muito tempo. No sonho ele viu o mundo que criou potencialmente, se expressar ciclo cósmico após ciclo cósmico (éons). Quando acordou do sonho, o Altíssimo deu um grande sorriso e, voando como um pássaro, lançou-se no abismo da noite, repartindo-se em milhares de pedaços que cintilavam com tal esplendor espiritual, com tal intensidade, que ...Fez-se a luz!
    Assim é que cada um de nós é uma partícula desta luz. A gnose mística sustenta ainda que é destino da humanidade descobrir sua unidade divina e reunir-se novamente, retornando ao lugar da queda, ao local onde feminino e masculino eram um só no Absoluto. A lenda ainda conta que para empreender feito de tal envergadura, o ser humano deverá encontrar embaixo, no elemento adâmico, a unidade perdida, para só então retornar ao Paraíso, coagulando-se com as milhares de miríades de si mesmo.
    Sofia representará assim o arquétipo do amor divino pelos homens, a misericórdia de Deus pela criação, e seu retorno ao mundo divino expressa a exigência da redenção da humanidade. Enquanto aprisionada na matéria perdida entre os homens é a Sophia Achamot, aguardando sua redenção para voltar a ser a companheira de Deus, primícia de suas obras: a divina Sophia Shekiná.
    Uma variante do mito diz que Deus, para criar o mundo, debruçou-se em uma janela e ficou longo tempo a sonhar. Era noite, o mais denso caos, e a sucessão de imagens passava pelos Pensamentos de Deus. Lá fora o negrume do abismo sem fim contrastava sobremaneira com os Pensamentos do Eterno. No seu sonho, Deus criava Adão, o homem universal à sua imagem refletida. Sonhou também que fez cair Adão em um profundo sono magnético, de modo que Adão adormeceu e o Ser Altíssimo tomou uma das imagens mentais com que este sonhava e revestiu de beleza e forma corporal a sua base. Depois consolidou a essência desse produto da imaginação que tinha extraído de Adão, fazendo dela sua esposa intelectual e lha trouxe. E o Eterno Deus Altíssimo sonhou ainda por muito tempo. No sonho ele viu o mundo que criou potencialmente, se expressar e manifestar. O final da lenda é misteriosa, pois termina com o Homem-Deus frente ao Superior Incógnito, um duplo seu: sua imagem e semelhança.
    Compare-se com a teoria bíblica das quedas (angelical, de Samael, e humana, de Adão) opondo o problema do livre-arbítrio ao do destino, sem conseguir alcançar a noção de complementaridade entre os princípios, o que seria feito, do outro lado do mundo: na China taoista, com seus pares “yang/yin” e com uma ética que visava aproximar o jen tao (o tao do homem) ao ch’ien tao ( tao do Céu), tendo como modelo as leis naturais e cósmicas...
    Assim, ao lado do Deus transcendente (ainda que escondido: Júpiter, Javé, Espírito Absoluto, Dialética Materialista), admitiam os gnósticos a imanência de Deus no coração do Homem, ou seja uma nova imagem do Homem, aceitando também que o Homem poderia vir a redimir o espírito, tanto quanto o Homem-Deus viera para redimir o Homem carnal. Nesse sentido - alquímico, por excelência - os gnósticos e depois os alquimistas farão a ponte entre o paganismo e o cristianismo, tanto quanto os essênios serão o elo entre o judaísmo e o cristianismo. Até chegar a Jung e sua contundente crítica ao cristianismo, em especial a relativa à transcendência de Deus, colocada como dogma de fé, e afastando a imagem divina da interioridade humana que, sem ela ressecou no materialismo vigente em nossa época (ver Dourley, J.P. - A DOENÇA QUE SOMOS NÓS, 1987).
    A ação mítica de Lúcifer ou de Prometeu representa a possibilidade de subida do nível de consciência, graças ao impulso para a salvação que vem do espírito (pneuma) e, sobretudo, ao aspecto divino do feminino em seu afã de conhecer-se: Sofia, Lilith, Eva ou Pandora, por exemplo.
    Podemos caracterizar, pois, a gnose de Alexandria como uma proposta de:
    1) hierarquia entre os indivíduos (o homem hylético, o psíquico, o pneumático) versus a
    hierarquia eclesiástica, que separava o clero dos fiéis. Como se percebe, tal hierarquia se
    estabelece, consoante o desenvolvimento espiritual de cada um: os hyléticos, que vivem ao
    nível da matéria: os psíquicos, que se deixam levar por suas paixões, só se alçam ao anímico e
    os pneumáticos que alcançam o mundo espiritual propriamente dito. Em cada grau, no entanto,
    havia perfeita igualdade, sem distinção entre os sexos ou entre fiéis e sacerdotes. Não havia, pois, uma hierarquia eclesiástica no sentido restrito do termo.
    2) ausência do intérprete autorizado.
    3) uma metafísica das relações entre o Criador e a criatura através de quatro movimentos: a
    emanação, a criação, a formação e a manifestação.
    4) configurar o criador do mundo na figura do demiurgo (responsável pelo mal e pelo
    sofrimento). Ficam, assim, recusadas as idéias do judaísmo e do maniqueismo sobre o livre-arbítrio ou o destino como origem do mal .
    5) partir da idéia de um Deus imanente em complementação à de um Deus transcendente.
    6) uma missão do homem redimindo o espírito (Deus), contrária à tradição de um Homem-Deus
    redimindo o homem carnal. Nesse sentido a Alquimia se revela como continuação do gnosticismo.
    7) opor a idéia messiânica de uma salvação coletiva ao esforço libertador do autoconhecimento individual e solitário (A verdade vos libertará...Conhece-te a ti mesmo e conhecerás a Deus...).

    Obs. O mal para os gnósticos não é apenas uma categoria moral, a hybris grega oposta ao métron, nem deve ser atribuído às quedas luciferina ou adâmica, em função do livre-arbítrio. “À pergunta: por que o homem deseja o mal?” respondem com a idéia de destino, como isca, colocado pelas moiras, entidades que urdiam o destino das coisas, na mitologia grega.

    Heloisa Cardoso

    V - INFLUÊNCIAS GNÓSTICAS NO PENSAMENTO DE JUNG:Jung encontrou nos gnósticos verdadeiros amigos, que lhe permitiram refazer elos históricos. Vislumbrou ele uma linha de continuidade entre suas descobertas relativas ao inconsciente, principalmente ao inconsciente coletivo - que nos identifica enquanto espécie - e as intuições dos mestres de Alexandria que, a seu modo, mítico ou especulativo, também eles iam ao encontro do inconsciente, ou de sua projeções.
    Por uns foi acusado de ser gnóstico (a pior das heresias para os cristãos ortodoxos); por outros, de agnóstico (pela recusa de assumir pressupostos metafísicos). Para Stephan Hoeller, Jung foi um gnóstico. Não só por sua atitude ante a vida, trazendo novos conceitos e dimensões para explicar o humano, como pelo fato de que buscou o gnosticismo de Alexandria, nos séc. II a IV, de nossa era, como fundamento para muitas de suas idéias. Para Jung. o processo de individuação permite o autoconhecimento e a autotranscendência. Contudo, Jung é considerado, entre outras razões, como agnóstico, por recusar a fé como fundante da experiência de Deus. E isto fica muito claro, em sua entrevista à BBC de Londres, quando indagado se acreditava em Deus, ele responde: “Eu não creio em: eu sei!”.
    A obra indiscutivelmente gnóstica de Jung é um pequeno texto, escrito sob a forma de poema-metafórico, intitulado OS SETE SERMÕES AOS MORTOS que ele assina sob o pseudônimo de Basilides, homenagem ao grande filósofo de Alexandria. Esse texto surgiu em circunstâncias estranhas, em uma atmosfera pesada, sentida até por seus filhos, ainda pequenos: campainhas tocando, sem que ninguém estivesse batendo; sonhos perturbadores etc., até que Jung resolveu pegar da pena e começou a escrever...E escreveu sobre a vida e a morte, tal como sentida por um gnóstico...
    No 1o Sermão, Jung faz uma espécie de cosmogonia, indicando a natureza do elemento primordial, o PLEROMA, segundo a terminologia gnóstica, isto é: o Nada ou Vazio primordial, que paradoxalmente, contém potencialmente Tudo ou a Plenitude. Trata-se de uma dialética de ambigüidade. O conceito de inconsciente coletivo pode ser entendido como o PLEROMA dos gnósticos, em nível psicológico individual. É infinito e incognoscível, é eterno, transcendental, incriado e intemporal. Nele os conteúdos são indiferenciados, e, portanto, incognoscíveis, no entanto, ele é, ao mesmo tempo, a fonte e matriz da consciência e de todos os seus conteúdos.
    Para Jung, o mundo criado se constitui de emanações e é penetrado pelo Pleroma, assim como um corpo é penetrado de luz. Daí, poder-se falar do Pleroma em nós, como um ponto pequeno e hipotético, no firmamento ilimitado do cosmos. Tudo que é definido e sólido é sujeito à mudança. A criação dos seres é fruto da diferenciação que exige o Principium Individuationis.
    Nesse Sermão, Jung fala, pois, do princípio de individuação, um dos pilares de sua teoria, e que se constitui na diferenciação a ser feita entre os pares de opostos que emanam do Nada primordial. Tal diferenciação não é, para Jung, apenas uma questão intelectual, mas a necessidade de que cada ser atinja a verdade de sua própria natureza. Para ele, há, assim, uma dialética de implicação mútua entre o Criador e os seres criados, cabendo ao homem realizar a soma de suas potencialidades latentes, integradas no Si-mesmo, sua totalidade transconsciente.
    A indiferenciação é como a morte, já que os opostos se anulam no Pleroma e, assim, Jung, diferentemente, de certas posições orientais dá grande valor ao trabalho consciente do ego, capaz de diferenciar os opostos. Na verdade, o estado anterior de igualdade é, para Jung, a anulação do indivíduo enquanto tal.
    Esses representam emanações do Pleroma e se apresentam como syzygias (pares complementares de opostos), significando as qualidades do Pleroma em nós, pois o Pleroma em si é vazio e não tem qualidades. Dessa forma, Jung se apresenta não como um dualista, pois cada um deve transcender o fascínio de cada pólo e guardar a distância de cada um (função transcendente). Jung apoia-se aqui na idéia do conflito de opostos de Heráclito.
    Diz ele: “Não a vossa mente, mas o vosso ser constitui a diferenciação”. Daí Jung recomendar que cada um de nós deve lutar por realizar sua verdadeira natureza, mantendo o raciocínio sob controle, através da gnose, sem anular as forças da vida. Trata-se de seguir o caminho fáustico, existencial, de viver a vida em sua plenitude.
    A salvação do homem constitui, pois, em sua libertação dos pares de opostos, das syzygias que, em termos junguianos, se constituem dos aspectos positivos e negativos dos arquétipos. Como, para Jung, o inconsciente é a matriz da consciência, nós não temos os pensamentos, mas eles fluem para nós a partir do Pleroma (função psicológica da intuição) e abrem nossa consciência para a plenitude do Ser.
    Assim, a verdadeira natureza do homem implica a relação dialética entre a consciência e a inconsciência, entre a moral e o instinto, sendo que nós no Ocidente privilegiamos a consciência, enquanto o Oriente desenvolveu mais seu relacionamento com o inconsciente.
    Daí que o desejo de autoconhecimento, da mesma natureza que o desejo por alimento ou por sexo, é o movimento pela transformação, superando as unilateralidades da consciência pela compensação exercida pelo inconsciente. Se vida e liberdade se reconquistam a cada dia, podemos dizer que Jung é um precursor da psicologia existencial.
    Na verdade, para ele, as teorias são apenas abstrações que nos afastam do mundo concreto e das conexões com nossa criatividade transformadora. Diz ele: É preciso mudar não os conceitos, mas a si mesmo, pondo o pensamento sob o controle do Self.
    No 2o Sermão, Jung faz uma espécie de teogonia. Ele fala de Deus, que denomina de Helios (sol) e do demônio. Deus já pertence ao mundo criado, pois se diferencia do Pleroma (é uma qualidade deste), mas é menos definido e diferenciado que a própria criação. Deus é a plenitude efetiva, manifestada do Pleroma; é a criação como atividade. Ele é a potencialidade do bem e do mal. É como a luz das estrelas que nos guiam, enquanto o demônio é o espaço vazio manifestado, que circunda cada uma. Ele é também o vazio efetivo do ser e o mal, como um princípio que atua em nós. O que Deus constrói, o demônio destrói, numa trama eterna de criação e destruição.
    Na psicologia junguiana, esses dois princípios estariam representados pelos arquétipos, as formas estruturantes de nossa psique e eles só existem se os discernirmos do Pleroma que eles também são.
    Esse dualismo DEUS-DEMÔNIO (influências zoroastrinas e maniqueistas) só existe no mundo das emanações, como as primeiras manifestações do NADA ou do Pleroma resistindo um ao outro, como opostos ativos, pela atividade de ABRAXAS, o deus incognoscível da atividade real do todo, ou da não-realidade ativa do ser criado. No Pleroma, eles se anulam porque se unificam.
    Para Jung, a atividade está acima de Deus e do Demônio, pois ABRAXAS, a atividade manifesta do Pleroma, preexiste a ambos e cria os seres diferenciados do Pleroma. Aqui é patente a influência de Goethe em Jung, quando no capítulo V, do Fausto, o poeta alemão diz: No princípio era a ação...
    Assim, bem e mal não seriam encarados como realidades éticas ou morais (ele critica, pois, o cristianismo por ter reduzido o problema à sua única dimensão moral), mas como forças metafísicas (por sua magnitude titânica), o que explica o célebre antinomianismo (desprezo pelas leis dos homens) por parte dos gnósticos. Enfim, o que está em jogo é o princípio do poder, a persistência e a mutação em todos os seres, pois, para ele, a vida é uma tensão de opostos e o mal é o oposto necessário para que se reconheça o bem (yin/yang como complementares metafísicos). Como um é relativo ao outro, sua origem está no próprio homem. Em suma, o conflito é uma realidade psicológica necessária (Heráclito) ao processo de individuação. O arquétipo correspondente é o dos irmãos inimigos: Caim e Abel, Esaú e Jacó, Osiris e Seth etc.
    Jung advoga a importância do reconhecimento de Deus na alma, como imago Dei, ou o Self. Desse modo, para ele, os arquétipos são o aspecto divinal da multiplicidade de deuses, são como que emanações divinas, como dito no item IV, sobre a gnose de Alexandria.
    No 3o Sermão, Jung fala de ABRAXAS, uma espécie de atividade cósmica, igualmente doadora da vida e da morte. Nesse Sermão Jung atinge beleza literária, com suas metáforas, semelhantes às de Goethe, o supremo poeta da língua alemã.
    ABRAXAS é a vida indefinível (seu nome tem 7 letras ou os sete regentes do mundo ou os raios criativos das esferas planetárias e significa “abir” = touro + “áxis” = pólo, eixo); é a energia psíquica, a atividade do todo, a mãe do bem e do mal, na dialética de ambigüidade em que o indivíduo se vê envolvido em sua ascese às esferas celestiais. É o élan vital, o arauto celestial, o poder supremo que une luz e treva, a energia vibrante e a suprema atividade responsável pelas primeiras manifestações do Pleroma.
    Nesse sermão, Jung refere-se ao ano cósmico do touro e sua etimologia que, em grego e em hebraico, compõe o número 365 (para os gnósticos eram os diversos céus governados por ABRAXAS), o número de obstáculos psicológicos a serem vencidos, na totalidade do tempo, para a libertação. Trata-se, na verdade, de um eterno-agora (criador/destruidor ou Vishnu X Shiva), ligado à figura de Osiris, do Cristo ressuscitado para os gnósticos, enfim de todos os heróis que triunfaram sobre os regentes guardiães do ego humano (arquétipos ou os planetas, na astrologia, que definem o caráter daqueles que subjugam - Marte, a ira; Vênus, o erotismo, Mercúrio, a ambição, etc.) e sobre o tempo linear ou cíclico a que estavam sujeitos.
    Esses regentes representam os poderes obstrutivos que caíram e se tornaram ignorantes e maléficos em camadas cada vez mais inferiores. Eles se opõem à busca e ao retorno às esferas e éons celestiais, a verdadeira fonte para o cumprimento das tarefas, obrigações, purificações e transformações.
    Invocado por talismãs e amuletos, ABRAXAS afastava a influência limitadora dos Regentes do Mundo, auxiliando na ascensão a estados transcendentes. Ele é o primeiro dos mistérios. Dos homens, apenas os pneumáticos (espiritualizados) podiam destruir o tempo, libertando-se do ciclo das necessidades (o sansara budista: a roda dos nascimentos).
    A salvação pela redenção de Jesus é um evento irreproduzível: mas a salvação pela ascese entre os éons é um evento reproduzível, pelo processo de crescimento espiritual. Do ponto de vista psicológico, ABRAXAS representa a união dos opostos, a dualidade complementar entre consciência e inconsciente. É a árvore e suas raízes escuras. É isto e aquilo; e não isto ou aquilo.
    Assim, a luta pela individuação é a conquista das diferentes regiões do inconsciente por parte da consciência, pela renovação através do Self. O requisito é a libido ou a energia psíquica, a força espiritual titânica, impessoal e amoral, indiferenciada que perpetua a vida da psiqué, incluindo os opostos e não se ligando unilateralmente a um deles. O que importa é a plenitude do ser. Para isso, não basta o conhecimento intelectual, é preciso a sabedoria intuitiva. Trata-se de unir o demiurgo à Sophia.
    A atitude da consciência em face de ABRAXAS não é a da simples contemplação ou veneração; mas a do temor, da reverência e da prudência. Não se deve resistir a ABRAXAS, porque ele representa o poder da Natureza, a aceitação do inconsciente, a permeabilidade entre a repressão e a servidão, pois na verdade nada acrescentamos nem subtraímos. Em suma, o 3o Sermão nos coloca diante da tarefa de projetarmos nossa alma para fora e para dentro, introjetando o arquétipo de Deus dentro de nós.
    No 4o Sermão, Jung nos remete às relações entre dois princípios divinos que unem o bem e o mal: Deus-Sol, como bem supremo; o demônio, como o mal supremo. Eles se apresentam como Eros flamejante (a chama que brilha e devora e se apaga: a própria vida em toda a sua violência) e como a Árvore da Vida. O primeiro gerador e doador de vida; o segundo acumula a matéria viva enquanto cresce, estabilizando e construindo a cultura e a civilização. O Homem, em sua escalada espiritual, precisa de ambos os princípios. Eles são arquétipos que opõem a consciência aos instintos. Vida e amor opõem-se mutuamente em sua divindade.
    Jung considera um politeísmo (e um polidemonismo) ao referir-se à quaternidade (quatro é o número das dimensões do mundo) dos deuses: o UM = o Deus-Sol, como princípio; o DOIS = Eros que se expande; o TRÊS = a Árvore da vida que dá forma aos seres, preenchendo o espaço com os corpos; e o QUARTO = o demônio, que abre o que está fechado, tudo dissolve e tudo destrói, conduzindo de volta ao nada. Deus é a estrela; o demônio é o espaço vazio por ela ocupado. O Pleroma é o vazio do todo e a unidade de tudo. ABRAXAS é a atividade do todo: o oposto de ABRAXAS é o irreal.
    Ele também fala de uma multiplicidade de deuses que podem converter-se em UNIDADE, como símbolos e arquétipos; sendo que como deuses se encontram em solidão e separados, enquanto cabe ao Homem o movimento de libertar sua existência pela individuação, à base de uma nova ética.
    Assim, Jung coloca-se como monoteísta, pois ele acha lastimável que se substitua a unidade de Deus - como união dos opostos - por uma diversidade que significaria a luta entre esses opostos. Indaga ele: “Como podeis ser leais à vossa natureza quando tentais fazer um dos muitos?”
    Diz Jung: “O homem é um partícipe da essência dos deuses, ele vem dos deuses e vai para Deus” (o eterno retorno) . Mas acrescenta: há deuses da luz (celestiais que se expandem ao infinito) e deuses das trevas (que diminuem e encolhem infinitamente). E, assim, tem-se um mundo celestial, múltiplo, em expansão (HÉLIO) e um inferno que se contrai, é o espírito da Lua e o servo da Terra. O menor, o mais frio e inerte que a própria terra. Mas esses diferentes deuses são apenas a expansão e a contração ao infinito da mesma energia.
    Nesse Sermão, Jung usa símbolos como os da sarça ardente e da árvore da vida e procura realçar que os pólos em luta na vida de cada um de nós são, de um lado, o corpo; do outro, o espírito; o sentimento versus o intelecto; o feminino versus o masculino; o instinto versus a civilização; Dioniso versus Apolo; ou o flamejante versus o florescente; a revolução versus a conservação; a guerra versus a paz; a destruição versus a construção.
    Diante desses opostos, cabe ao homem a tarefa heróica, mística e ética, de centralizar-se em face de cada pólo, verticalizando-se ao imprimir à sua vida um sentido, uma significação através do Self ou da divindade interior: ao mesmo tempo deve horizontalizar-se, ao se colocar em relação com o Outro, buscando conhecê-lo na vida social, assumindo suas responsabilidades em face da nação (como entre os judeus) ou no domínio de uma fé comum (como entre os cristãos). Sendo o caminho, o do autoconhecimento e o da individuação.
    Não se trata de uma pura e simples volta à Natureza (Rousseau), pois esta pode não ser pacífica e até ser destruidora, colocando-se acima do bem e do mal humanos. Aconselha Jung a segurança, a continuidade, a permanência ao lado da criatividade, da espontaneidade, assegurando tanto as instituições sociais, quanto a criatividade artística individual.
    Ele alerta contra a trivialidade do cotidiano, das repetições e dos hábitos, que refazem sempre um retorno cíclico às acomodações costumeiras. Jung mostra os pontos positivos do florescente: a autopreservação e a nutrição, a cultura e a civilização que retratam a realidade do coletivo, exigindo tolerância, refreamento do instinto; e seus pontos negativos, como a repressão, propondo, em seu lugar, uma disciplina interior ou uma autodisciplina.
    No 5o Sermão, Jung fala do Homem e da comunidade, para os cristãos primitivos, a Igreja ou ekklesia (assembléia do eleitorado: homens que se reconhecem como de origem divina). Constituem a oposição entre a espiritualidade (Pleroma, deuses celestiais) e a sexualidade (deuses terrestres); entre o Logos, Apolo e Minerva, de um lado; e Eros, Dioniso, Afrodite, de outro. É um problema energético que exige uma concessão à carne, pois representam demônios super-humanos, mais próximos do homem que dos deuses.
    Nesse sermão, Jung fala do mito da Grande-Mãe (mater coelestis) e do phallos (pai telúrico), a matéria (hylé). O princípio celestial é feminino; o terrestre é masculino: o primeiro recebe e compreende; o segundo gera e cria. A união desses opostos engendra o Anthropos, o Andrógino, o Espírito, Logos e Sophia.
    No homem, diz Jung, a sexualidade é mais terrena e a espiritualidade, mais celestial, na direção do maior. Na mulher, a sexualidade é mais celestial e a espiritualidade, mais terrena, na direção do menor. O conflito entre anima e animus beneficia a ambos, embora homem e mulher devam separar seus caminhos espirituais, segundo a natureza da diferenciação, para não se tornarem demônios um para o outro. “Cada um deve dirigir-se ao próprio lugar.”
    De fato, para Jung, o homem deve separar-se da espiritualidade e também da sexualidade - colocando a necessária distância entre esses dois demônios para não ser vitimado por eles. O homem deve conhecer o que é menor; e a mulher o que é maior. Mesmo que esteja sujeito às leis da sexualidade e da espiritualidade (que são seres superiores e externos a ele), deve buscar apoio na comunidade, porque é fraco e pode ser por eles vitimado.
    Nós não possuímos esses dois demônios; eles é que nos possuem, e se não nos diferenciarmos, ficaremos sujeitos às suas leis. Eles são causas comuns e perigos graves aos quais não se pode escapar. Por isso, devemos unir-nos em comunidade, compensando nossas fraquezas, ou sob o signo da mãe ou do pai (phallos). Assim, evitaremos sofrimentos e enfermidades, embora a comunidade fragmente e dissolva, pois a diferenciação conduz à solidão..
    Na verdade, ensina Jung, a comunidade existe por causa dos deuses que forçam a uma comunhão, e ele mostra que, enquanto a vida em comunidade nos faz crescer em abrangência, a solidão do indivíduo que procura a si mesmo faz crescer em altura e profundidade. O primeiro dá calor, o segundo dá luz. O tema é a tensão entre o individual e o coletivo, entre o masculino que se resolve em profundidade e o feminino que engendra o silêncio (yang/yin). Pois, afinal, é da tensão dos opostos que se gera a energia e seu excedente é necessário à construção da cultura e da civilização, da arte e da estética, da religião etc.
    É marcante a influência de Heráclito no pensamento de Jung, do princípio de que é da luta dos opostos que nasce a luz. Do ponto de vista psicológico, acha Jung que não se deve ter apego a qualquer dos pólos, nisso consistindo o valor transformativo do conflito.
    Simbolicamente, Jung vê a comunidade feminina na cidade-mãe e a masculina na fortaleza-pai. Os opostos, psicologicamente, para Jung, se fundem, ou para produzir algo novo intrapsiquicamente (o andrógino alquímico); ou criam algo novo no campo de força entre eles, as duas pessoas interagindo com autonomia, mas na relação surgindo algo novo entre elas.
    Eva é a feminilidade psíquica da intuição; Adão é a alma vivente, moroso, animalesco que se conscientiza através de Eva. Esta constatação não deve ser confundida com uma dualidade, em função da consciência diferenciadora, que considere o espiritual como bom e o animal, como mal. Nesse ponto, Jung critica o cristianismo hegemônico que acabou com o valor do conflito, considerando toda concessão à carne como pecado contra o espírito, traduzindo-se em culpa e desesperança.
    Em conseqüência, surgiu um espiritualismo unilateral ao qual se opôs o Renascimento e, por sua vez, um antropocentrismo unilateral: materialista, trivializando a vida. Ele comenta sobre alternativas orientais - o taoísmo, o tantrismo - opostos que se complementam em luta criativa às premissas unilaterais ocidentais. É claro que Jung critica também a unilateralidade da espiritualidade de algumas seitas orientais, considerando como missão do Ocidente reviver seus próprios mitos, como a alquimia de Toth ou de Hermes.
    Esse Sermão levanta, enfim, todo o problema das relações entre os sexos, não escapando às questões do feminismo, com suas implicações culturais. Mas o que verdadeiramente importa é a união dos opostos relativos à construção do gênero (masculino/feminino) em cada um de nós. A realização da androginia compondo 4 fases:
    1) a do ego, do sexo ou da nigredo;
    2) a do sexo unido à emoção ou da albedo;
    3) a do amor romântico, projetado, ou da citredo;
    4) a do hieros gamos, a rubedo, a introjeção do Cristo gnóstico ou do 2o Adão (o homem individuado).
    No 6o Sermão, Jung analisa dois símbolos: o da serpente que corporifica a sexualidade, ou o pensamento do desejo; e o do pássaro branco, que corporifica a espiritualidade ou o desejo do pensamento. Mais uma vez considera o conflito entre sexualidade e espiritualidade, no Anthropos ou no Deus interior.
    A serpente é a alma telúrica, mensageira do Pai Telúrico ou do PHALLOS; e o pássaro branco é o mediador entre o Homem e a Mãe Celestial. Interessante notar a inversão que aqui Jung faz, considerando a divindade celestial, feminina; e atribuindo caráter masculino à Terra.
    Jung fala dos adoradores da serpente (os ofitas) e da kundalini. A serpente é como Mefistófeles a guiar Fausto. Ela representa a sabedoria sagrada dos instintos que resgata o 1o Adão da servidão ao demiurgo. É uma alma semidemoníaca, tem um caráter feminino, associada aos mortos que não passaram ao estado de solidão, e instila temor, inflamando o desejo.
    Psicologicamente, trata-se de um espírito tirano e atormentador, tentando para a pior espécie de companhia. A serpente desce às profundezas, paralisa e estimula o demônio fálico. Traz pensamentos ardilosos saturados de desejo. Ela nos é útil ao escapar de nosso alcance e, ao persegui-la, ela nos mostra o caminho que, limitados, não poderíamos encontrar.
    O pássaro branco é a alma semicelestial, casta e solitária; mensageira da MÃE CELESTE que intercede e adverte, embora não possua poderes contra os deuses. É o pensamento efetivo, masculino, é o desejo do pensamento que dá significado à vida, através do conflito. Comanda a solidão e recebe as mensagens dos que alcançaram a perfeição. Para atingir tal significado é preciso a gnose, como autoconhecimento, introspecção e consciência; ligada à pistis (confiança ou fé empírica). É um veículo do Sol.
    Em sua dialética de oposições, Jung acha necessário incorporar os dois princípios: o pensamento e o desejo. Diz ele: “Cada oposto contém sua polaridade latente que pode emergir pela enantiodromia...O mistério dos opostos não é um problema a ser solucionado, mas uma condição a ser superada pela psiqué como um todo, não apenas pelo intelecto, levando à transformação na cadeia infinita dos opostos polares que formam a estrutura do ser.”
    Criticando o racionalismo ocidental, Jung adverte para a questão do significado, da gnose como experiência da totalidade ou da inteireza. É um processo de tensão entre opostos e a posição gnóstica é um tipo especial de significado que deve ser vivido. Para Jung, a verdadeira ekklesia é a porção da humanidade que reconhece sua própria origem divina, é a pessoa consciente que busca a comunidade para fortalecer a vontade humana no sentido da individuação ou da solidão.
    Isso gera a tensão entre o individual e o coletivo, já que o autoconhecimento ou a gnose, para ser atingida, exige a distância em relação ao coletivo que, no entanto, existe duplamente em nós, por via da consciência e do inconsciente.
    Para o gnóstico, pecar é errar o alvo (etimologia do termo hermatia) e a questão da paz de espírito é apenas uma pausa entre o conflito passado e o conflito iminente. Mas como o conflito é que traz o significado, a gnose é a experiência desses significado, a compensação entre os opostos.
    Hoeller considera que há diferenças entre a serpente gnóstica e a concepção junguiana dela. A primeira é sábia e sagrada, mensageira de SOPHIA e da consciência, tendo representado esse papel junto a Eva. Para os hindus, a serpente kundalini é um símbolo da individuação humana. Para Jung, ela é um demônio tirânico, com o qual, no entanto, se aprende, pois ensina a gerar-se a si mesmo, numa opus contra naturam, por sermos duais: carne e espírito, a serem transcendidos para se formar um novo Self.
    Em aramaico, a palavra serpente quer dizer instruir, pelo simbolismo dual do anfíbio, por sua co-inerência de opostos num mesmo ser ou princípio. Comenta Hoeller que, na verdade, a serpente e o pássaro têm a mesma natureza: a feminina e a masculina, formando o Andrógino e fundando a divisão do Anthropos em terrestre e celeste.
    Enfim, o pássaro branco é o pensamento, o espírito, a transcendência, o princípio salvador. É Hermes, como o deus da revelação, o mediador entre os homens e os deuses, levando-lhes a SOPHIA. O Anthropos hoje é pessoal e humano e deve precaver-se contra o perigo da inflação do ego.
    No 7o Sermão, Jung fala do ser humano - criador de significados - como o portal por meio do qual penetramos do macrocosmos (o infinito exterior, o mundo dos deuses, dos demônios e das almas) no microcosmos (o infinito interior) e diz que “à imensurável distância cintila solitária uma estrela, no ponto mais alto do céu. Trata-se do único Deus desse solitário ser. É seu mundo, seu Pleroma, sua divindade”. É seu Deus pessoal...Simbolicamente, o pentagrama representaria o microcosmo, e o hexagrama o macrocosmo, representação do mundo das projeções.
    O homem é o elo, o mediador que promove o equilíbrio entre o micro e o macrocosmos; mas isso ele só fará se, como ABRAXAS, for capaz de dar nascimento a seu próprio mundo, de mudar e transformar-se, operando a opus contra naturam, isto é, superando o mundo natural, criando um mundo de significados, acabando com as projeções ilusórias, libertando-se dos dualismos e de ABRAXAS, conquistando o Self, no retorno a Si-mesmo, unindo o micro e o macrocosmos, mediante a lei da sincronicidade, que traduz a eternidade interior e exterior, pela transgressividade dos arquétipos.
    A estrela que cintila solitária é o Deus do homem e seu destino; é sua divindade tutelar e seu repouso. O fim da jornada de sua alma, nela reluzem todas as coisas com o brilho de uma grande luz. “A esse Ser, o homem deveria orar”, aumentando a luz da estrela, construindo uma ponte sobre a morte, aumentando a vida no microcosmo.
    E só quando conquistado o seu Deus pessoal a ser gnosticamente vivenciado, além da fé e da crença cegas, com a imago Dei em seu coração é que o homem se sentirá interdependente com Deus, promovendo pela gnosis kardia - isto é, pelo “conhecimento do coração” que confere um significado à vida - o mito da redenção mútua e da encarnação contínua de Deus em cada indivíduo da espécie humana. Aí poderá vivenciar o mito do eterno retorno: RUMO AO LAR ENTRE AS ESTRELAS...

    VI - CONCLUSÃO
    Jung é um gnóstico, na medida em que vivencia a experiência direta e interior (1914-19) com as imagens arquetípicas: sombra, trevas etc., como o caminho do auto-conhecimento e da individuação.
    O processo junguiano de individuação é a contrapartida moderna da luta pela aquisição gnóstica do autoconhecimento. Assim, salvar o Homem do mundo é para um gnóstico o que Jung denomina de desidentificação em relação ao Outro exterior e ao Outro interior, inclusive de sua Sombra, já que o Bem e o mal estariam contidos no Pleroma, a realidade indivisa primitiva, indiferenciada, para Jung, o inconsciente de Deus, contendo em potencial o caos e o cosmos.
    Os Sermões representam a expressão metafórica de uma experiência interna. Assim, alguns paralelos podem ser traçados entre os princípios gnósticos e a psicologia junguiana. São em número de oito:
    1- o elemento pneumatológico = Si-mesmo;
    2- diálogo consciência/inconsciente, como a tentativa de experiência direta com a realidade
    arquetípica;
    3- processo de individuação como o percurso da alma para retornar à sua verdadeira morada, a
    seu hthos, pelo processo de autoconhecimento;
    4- a aceitação do mal, da dor e do sofrimento como ontologicamente substantes e não apenas
    como ausência do Bem;
    5- a vivência da alienação da consciência para atingir a plenitude;
    6- o Pleroma, o Anthropos e o Si-mesmo, como a experiência dos opostos;
    7- a plenitude do Si-mesmo como aspiração substitutiva à da santidade de Deus e dos santos;
    8- a plenitude e não a perfeição moral como escolhas emocionalmente auto-sustentadas.

    A teogonia de Jung é a projeção no macrocosmo da psiqué humana e os mitos de criação (cosmogônicos) descrevem o despertar da consciência a partir do inconsciente. Para ele, o Demiurgo é o ego ou o pequeno Si-mesmo. Nossos relacionamentos projetam nossos fracassos e inadequações interiores: é o reino da sombra, o vilão interior. Além disso, ele escolhe Sophia como a mais elevada entre as figuras de anima: Barbelo, Eva, Helena e Maria. Estas são representantes de fases anteriores do processo de autoconhecimento masculino, que é acionado quando a anima, ativada, conduz a alma para dentro do interior psíquico e produz a totalidade indispensável. Para ele, salvar o homem do mundo é um processo de desidentificação em relação ao Outro externo e ao Outro interno.
    Jung diz mais: mudança sem transformação é um desastre: os elementos naturais apenas mudam, mas não se transformam, por isso é necessário realizar a opus contra naturam, para que haja real transformação e diminuam as projeções, preparando o homem para encarar sua própria luz interior, quando o Self retorna a si-mesmo, dando a quintessência do que foi e do que será.
    Sobre a questão do mal, Jung pronuncia-se contra a teoria platônica, retomada por Santo Agostinho, de que o mal é a ignorância ou privação do Bem; para ele, o mal existe como pólo antinômico do Bem, atributos que se anulam no Pleroma. Isso ele afirma em seu Primeiro Sermão. Nessa questão, Jung coloca-se contra a teoria agostiniana da privatio boni, de origem platônica.
    Jung levanta a hipótese da inconsciência de Deus, a partir do caos da indiferenciação ao cosmos, da lei, da ordem e da diferenciação. Para ele, não existem seres irreligiosos, apenas há os que não reconhecem o nível importante do inconsciente, o poder da imaginação e a dialética de compensação que efetiva, por meio dos símbolos, os conteúdos inconscientes. Mas acrescenta ele: a necessidade não é de uma crença e sim de uma experiência religiosa que integra a alma numa totalidade. Deus é para ser vivenciado, pois só o que experimenta está vivo, o que crê está morto. Daí a importância do controle da consciência que enriquece e beneficia a alquimia e a magia do inconsciente em suas projeções.


    É assim que Jung dá grande importância à subida do nível de consciência, a partir do inconsciente urobórico e indiferenciado. Disso dão conta os mitos luciferinos e prometeicos, bem como os papéis de Lilith e Eva.
    Na verdade, Jung acha que não somos nós que fazemos as imagens de Deus: “Elas é que se fazem”, constituindo-se a imago Dei num complexo autônomo de grande força e intensidade, arraigado na plenitude do Ser, na psiqué como um todo, cabendo apenas ao ego pessoal confiar nesse poder transcendente, que é o Deus que está na alma, como uma realidade viva, dando-nos o esplendor dos recursos suprapessoais, da criatividade e da auto-renúncia.
    Tais idéias conduzem diretamente à relatividade da concepção de Deus, sendo a prece apenas o prazer que se extrai da experiência divina, como doação de si-mesmo a seu Deus interior: a gnosis kardia, já mencionada. Por via de conseqüência, o mito da encarnação contínua de Deus nos seres criados e a redenção mútua do homem e de Deus, idéias que Jung retomará na década dos 50, com seu “Resposta a Jó”.
    No campo da moral, Jung aceita o antinomianismo dos gnósticos (não reconhecimento das leis ditadas pela moral convencional dos homens em sociedade) e propõe a ética da convicção pessoal, ditada pelo núcleo arquetípico da sabedoria interior que cada homem possui. Para ele, a meta da plenitude não deve ser confundida com os ideais da perfeição, pela via da imitação do Cristo.
    Hoeller acha mesmo que a individuação pode implicar em ir-se contra os critérios estabelecidos pela sociedade, evidenciando um conflito entre a lei e a liberdade do indivíduo, único verdadeiro portador de consciência. (Cf. 1993:155).
    Como Deus é uma união de opostos no Pleroma, a plenitude do Ser só ocorre no inconsciente coletivo: bem e mal, belo e feio, verdade e erro etc. Daí, a importância da integração da sombra, para compor a totalidade do indivíduo, incluindo seu lado negativo ou rejeitado no processo de individuação.
    Acompanhando Hartmann e Schopenhauer, Jung concebe Deus como inconsciente, representado pelo caos e sua indiferenciação, tanto no inconsciente, como no cosmos. Resulta, então que a missão do homem é o resgate da diferenciação pela consciência, inclusive pela consciência do mal.


    A subida do nível de consciência, cujos mitos principais, já apontados, são os de Lúcifer e de Prometeu é a verdadeira missão do homem na terra e o papel do feminino no processo de individuação (Lilith, Eva, Pandora) é reconhecido em diversos mitos de diferentes povos.
    Jung segue ainda as idéias de um filósofo medieval - Joachim dei Fiori - que falava de uma Era do Pai, uma Era do Filho e uma Era do Espírito Santo. Em seu livro “Resposta a Jó”, Jung retoma essas idéias com seu mito de encarnação contínua de Deus e da redenção mútua do homem e de Deus.
    Do ponto de vista religioso, aceitam os gnósticos de Alexandria, nesses primeiros séculos da Era de Peixes, a figura de Jesus - o homem perfeito - que encarna o CRISTO, o ungido, o Messias - emanação do Deus perfeito - para a redenção do Homem e da Humanidade. Jung, no entanto, criticará a unilateralidade da concepção cristã, com a ausência da sombra divina, o Leviatã. Ele fala, também, da sombra de Deus e do Cristo, ainda que não aceita oficialmente pelo cânones da Igreja. Ele se refere à figura do Anticristo, que surgiu no fim do primeiro milênio cristão, como uma enantiodromia à perfeição imaculada do Cristo. Aconselha ele que devemos temer a Deus e ensina que a idéia do anticristo é arquetípica, para completar o quatérnio: MAL X BEM; ESPÍRITO X MATÉRIA..

    Em suma, a salvação ou redenção do Homem não se faz pela fé, mas pelo conhecimento - GNOSE (do grego = conhecimento). Mais precisamente, pelo autoconhecimento. Coincide assim o esforço gnóstico com o processo de individuação junguiano, a partir dos seguintes pressupostos:

    1) - se há um Deus supremo, transcendente; por outro lado, há um Deus imanente, em cada ser
    humano, que cumpre libertar e contactar, pela experiência direta do divino em nós;
    2) - o caminho para isso é o da transformação da alma, cadinho onde as experiências místicas
    ocorrem, e onde se cumpre (ou não) o casamento alquímico do Rei e da Rainha, do divino e do
    humano, em nossos corações: é o Caminho da Individuação;
    3) - a meta e o propósito da vida são, portanto, o atingimento desse estado de consciência, a
    partir da inconsciência - da agnoia - anterior, sombra que sustenta o desabrochar da consciência
    divina no Homem;
    4) - o grande pecado da alma é a ignorância (avidya, em sânscrito) que a mantém nas trevas,
    afastada de sua divina origem.
    5) - a possibilidade de se realizar a transmutação da alma é sustentada pelos arquétipos,
    elementos estruturantes da psiqué, padrões e formas dominantes que organizam o ego,
    complexo do nível consciente, assim como as demais partes que se confrontam na arena
    psíquica: a sombra - geralmente identificada pelos aspectos rejeitados, não assimilados que
    permanecem subliminares na inconsciência; a persona - cuja base arquetípica permite a
    adaptação ao mundo exterior, de relação, integrando a consciência coletiva no indivíduo etc.
    6) - dos arquétipos - do pai, da mãe, do puer, da puella, do senex, do animus, da anima e outros - o principal, é o SELF (Si-mesmo), o que coordena, estrutura e corrige compensatoriamente os desvios das ações conscientes. Representa a imagem de Deus em nossa alma, o Deus interior, o Cristo imanente, objeto constante da busca gnóstica pelo conhecimento e pela devoção.
    7) - por último, a relação dual entre matéria e espírito, se é resolvida por alguns gnósticos pela
    negação da primeira e até por sua tentativa de supressão, por outros, mantido embora o
    dualismo, a matéria é considerada divina, por ser o Templo que abriga o espírito e, assim, é
    considerada e respeitada. Alguns gnósticos chegaram ao extremo de supor que nada do que
    fosse materialmente feito poderia afetar o espírito, razão pela qual permitiam-se até exageros e
    licenciosidades, condenados pelos demais (Carpócrates).
    8) - ABRAXAS é a energia psíquica, a vida criativa que confere significado a partir da ilha da consciência que emerge do inconsciente. O mergulho neste, no entanto, exige o afastamento do espetáculo feérico da vida ativa sustentada por ABRAXAS.

    Os Sete sermões representam a descida pelo setenário do Pleroma à psiqué humana, a criadora das imagens, sendo o homem o mediador entre as duas eternidades, e a sincronicidade o ponto de encontro entre ambas. Trata-se do encontro entre a física subatômica e a psicologia analítica.
    É o homem que dá significado através da consciência - reino das avaliações subjetivas - contactando e ativando emocionalmente o inconsciente e, assim, trazendo as imagens arquetípicas à luz da consciência. Sendo os arquétipos psicofísicos ou psicóides, eles se manifestam nos dois planos, o que caracteriza sua transgressividade.


    O homem, como alquimista e sacerdote dessa nova gnose, é um modelo unitário da realidade com conexões causais e acausais, reconciliando espírito e matéria, na unidade do mundo, na síntese do unus mundus. Vida e espírito se reúnem: o espírito dá o significado, mas ele não é nada sem a vida...
    Sem dúvida, que a natureza dual da condição humana aconselha o convívio sábio com estas forças instintivas, inconscientes, que deverão ser encaminhadas - pela GNOSE, pelo reconhecimento - à luz da consciência, que delas retirará a necessária energia para a Grande Obra, a saber a transmutação do chumbo em ouro, da matéria bruta em matéria sutil, ultrapassando os sete corpos, os 32 caminhos e as 50 portas - estreitas que sejam - para se chegar à flor de ouro, que jaz escondida no fundo de nossas almas. Achá-la é o desafio diuturno da vida de cada um de nós!
    No entanto, é preciso precaver-se contra o falso otimismo do poder positivo da mente: é preciso estar sempre de olhos abertos, sabendo introvertê-los, para fugir da sedução de ABRAXAS, encontrando o Deus interior que realiza a própria transformação, como realidade psíquica, que dá significado à vida, engendrando o processo de individuação.

    BIBLIOGRAFIA

    1 - BAIGNET, M., LEIGH, R., e LINCOLN H. - O SANTO GRAAL E A LINHAGEM SAGRADA. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
    2 - DOURLEY, J.P. - A DOENÇA QUE SOMOS NÓS: a crítica de Jung ao cristianismo São Paulo: Paulinas, 1987.
    3 - FERRATER MORA, J. DICCIONARIO DE FILOSOFIA. Buenos Aires: Sudamericana, 1958.
    4 - HOELLER, S.A. - A GNOSE DE JUNG E OS SETE SERMÕES AOS MORTOS. São Paulo: Cultrix, 1990.
    5 - - JUNG E OS EVANGELHOS PERDIDOS: uma apreciação junguiana sobre os Manuscritos do Mar Morto e a Biblioteca de Nag Hammadi. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1993.
    6 - JUNG, C.G. - SÍMBOLOS DA TRANSFORMAÇÃO
    7 - LAPERROUSAZ, - OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.
    8 - SCHUON, F. - GNOSIS, lenguaje del Si. Trad. do francês por José Manuel de Rivas. México: Heliópolis, 1993.
    9 - VOEGLIN, E. - CIENCIA, POLITICA Y GNOSTICISMO. Madrid: Rialp, 1977.

    * Livre-Docente e Doutora em Ciências pela UERJ. Pesquisadora da obra de Jung, com livros e artigos publicados.
    posted by iSygrun Woelundr @ 7:21 da tarde   0 comments
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