Danielle le Fay
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Provavelmente, muitos ouviram falar de "complexos": "complexo de
inferioridade", "complexo de castração", "complexo de Édipo", "complexo de
Electra", "complexo de poder", etc. Este termo deixou há muito a esfera
profissional para se tornar de uso coloquial e, com isso, perdeu muito do
seu sentido original.
A teoria dos complexos foi desenvolvida por Jung quando criou um
teste de associação de palavras. Ele dava às pessoas uma lista de palavras
em ordem aleatória para que fizessem associações, o tempo de associação era
cronometrado. Jung verificou respostas dadas num intervalo de tempo maior do
que o das demais palavras-estímulo, ausência de resposta, tendência à
perseveração, erros, repetição dos termos dados e interpretação errônea,
formando grupos de temas correlatos. Jung denominou, “complexos” a esses
grupos de palavras-estímulo que levavam a respostas anômalas. Posteriormente
este conceito foi ampliado, passando a designar núcleos na personalidade com
características próprias, identidade e capacidade de ação independente.
Os Experimentos de Associação de Palavras de Jung, constituíram
a primeira demonstração empírica da atividade do inconsciente e o primeiro
instrumento para se lidar objetivamente com a atividade não racional da
psique. Porém esses, como a maioria dos testes psicológicos, estão em franco
desuso mas têm valor histórico e são ainda empregado em alguns institutos de
formação de analistas junguianos com fins didáticos. O motivo disso se dá
pelo fato de que esses testes pouco ou nada mais acrescentam ao que pode ser
deduzido numa entrevista conduzida por um analista experiente.
Observações semelhantes às de Jung haviam sido feitas por
Goethe, Wundt, von Hartmann e outros. Goethe, com seu espírito sagaz de
observação, lembrava que sua secretária cometia erros de datilografia de
acordo com certos padrões e certos temas. Freud, no seu livro Psicopatologia
da Vida Cotidiana, de 1900-1901, fez observações semelhantes, designando por
“atos falhos” ao que tradicionalmente se denominava lapsus linguae.
Em linguagem coloquial os complexos seriam nossos “pontos
fracos”, e se traduziriam por expressões como “não falar em corda na casa de
enforcado". Sempre há uma explosão irracional quando algum complexo é
ativado. Para Jung, no começo do seu trabalho, os complexos emocionais
seriam o tema inicial a ser visto numa relação terapêutica, considerando que
mesmo nas psicoses haveria um núcleo afetivo. Jung os comparou à música de
Wagner, onde o Leitmotiv sempre ressurge, porém sob forma de variações 1.
Isso ocorre na vida de todos nós sob a forma de temas ou ações recorrentes.
Sempre repetimos alguns padrões negativos ou positivos de comportamento no
trabalho, nos relacionamentos afetivos e isso é mais ou menos constante em
nossas vidas.
Note-se o fechamento e isolamento desses complexos autônomos,
que os psiquiatras franceses chamavam de existences secondes no estudo de
pacientes histéricos 2. Este pensamento da psiquiatria francesa do século
XIX, deu origem a descrições de personagens com supostas “múltiplas
personalidades” na literatura de ficção, algo não é mais aceito pelos
especialistas. O que realmente poderia haver é que essas características dos
complexos de repetição e isolamento poderiam levar, em certos casos
patológicos, a uma aparente dissociação em relação ao todo da psique. Ocorre
que não se pode falar de um complexo, mas de infinitos núcleos energéticos
atuando em conjunto, sendo os complexos análogos a psiques parciais 3. De
acordo com Jung, complexos dos quais se teria maior consciência seriam menos
problemáticos do que os inconscientes, que seriam os mais freqüentes.
Em casos patológicos como nas neuroses psicoses e o que chamamos de
“inflação” na escola junguiana, pode-se dizer que “é o complexo que tem o
indivíduo”, não o contrário. Em diversas culturas isso é chamado de
possessão por algum deus ou demônio.
Em algumas religiões, como nos Candomblés do Brasil há a possibilidade da
vivência dos complexos energéticos de forma socialmente aceita. Durante
alguns dias da semana o neófito tem que prestar culto a um determinado deus
que o possui e a paz é mantida pela vivência e não pela repressão desses
conteúdos afetivos. De forma análoga a um contexto politeísta, como o do
Olimpo grego, teríamos sempre inúmeros complexos atuando na psique, cada
qual constituído por imagens, pensamentos e energia própria e estes seriam
secundários a um ou vários arquétipos.
O núcleo desses complexos afetivos, segundo Jung, conteria não só essa carga
emocional como também uma qualidade essencial que lhes é própria e que levou
Jung a formulação das hipóteses dos Urbilder (imagens primordiais) e dos
Arquétipos 4. Este quantum de energia próprio dos núcleos desses complexos
provocaria também alterações corporais, o que conduziu Jung à elaboração de
pesquisas relacionadas com a medicina psicossomática. Visto que, num certo
nível não se poderia fazer uma distinção clara entre o inconsciente coletivo
e a matéria, o corpo físico. Posteriormente, essa condição intermediária
entre psique e matéria foi denominada, “inconsciente psicóide” pela escola
junguiana.
Jung postulou uma finalidade, uma função teleológica, para os complexos,
segundo a qual esses não seriam apenas negativos, mas seriam fontes para a
canalização da energia psíquica. Complexos afetivos seriam, principalmente,
conteúdos do inconsciente pessoal; formariam o lado pessoal e privado da
vida psíquica. Enquanto que os assim chamados arquétipos seriam próprios do
inconsciente coletivo 5.
Da mesma forma, o que chamamos de eu, ego, nada mais seria que um complexo,
o complexo do ego (Ichkomplex), cujo núcleo emocional estaria situado no
próprio corpo. Segundo Jung, o complexo do ego não seria a totalidade de uma
pessoa mas existiria paralelamente ao Self, o arquétipo da totalidade. O ego
(eu) não compreenderia, portanto, à totalidade da personalidade, mas seria
originado do todo, do inconsciente primordial, isto é, do inconsciente
coletivo. Há uma imagem semelhante no Brihad-Aranyaka Upanishad, onde há uma
passagem segundo a qual, no princípio do mundo nada mais haveria que o
Atman, só, em forma de uma pessoa. Olhando em volta nada mais via. Num dado
momento ele disse: "eu sou!". Daí surgiu o nome "Eu", e ele teve medo,
porque quem está só tem medo. Pensou que se ninguém mais havia além dele por
que temer? Mas não tinha nenhum prazer, "porque quem está só não tem nenhum
prazer", então desejou um segundo ser e se dividindo em duas partes
transformou-se em um
marido e uma esposa. Da união desse par primordial surgiu a espécie humana.
Contudo a esposa, para se esconder das investidas do marido,
metamorfoseou-se em diversos animais. E o marido, sempre a persegui-la,
metamorfoseava-se na contraparte masculina. Com isso, as diversas espécies
animais foram sendo criadas 6.
Nesta lenda, o Eu surge do não eu, do Atman, como no modelo junguiano do
desenvolvimento da personalidade, no qual a formação do complexo do ego, que
julgamos ser erroneamente o todo da nossa personalidade, se daria em função
do arquétipo do ego e teria sua origem no inconsciente coletivo.
Podemos imaginar a nossa psique como um sistema planetário, esses núcleos
energéticos seriam como os planetas e estrelas, cujo movimento cíclico
provocaria mudanças análogas à maré alta, maré baixa, eclipses etc. A psique
como natureza é análoga a todos os demais processos naturais e, por
conseguinte, cíclica. Os núcleos energéticos associados aos complexos e
arquétipos, estando “constelados”, seriam responsáveis pelos nossos ciclos
existenciais e fases das nossas vidas de retração e ascensão, e mesmo pelos
nossos “eclipses” energéticos temporários.
REFERÊNCIAS.
1 JUNG, C. G. Collected Works, v. 3 p.39n.
2 FREY-ROHN, Liliane. Von Freud zu Jung. Zurique, Daimon Verlag, p.55.
3 JUNG, C. G. Collected Works, v. 8 par. 202.
4 FREY-ROHN, Liliane. Von Freud zu Jung. Zurique, Daimon Verlag, p.46.
5 JUNG, C. G. Collected Works, v.9i, p.4.